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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Um mundo menos desigual, é possível

Não é possível não sentir um desconforto, ficar insensível à vida de tanta gente marcada por um destino que lhe determina os dias. Não é possível compreender que alguns vivam junto a um mar onde nunca tomarão banho, arrumem quartos em hotéis onde nunca poderão dormir, sirvam em restaurantes onde nunca  comerão uma refeição sentados na sala...
Não é possível aceitar um desenvolvimento tão desequilibrado, onde a par dos maiores luxos subsistem as maiores dificuldades e as maiores carências. Um desenvolvimento assim, devia envergonhar todos os poderosos do mundo. Nem tudo é economia, senhores; nem tudo são índices macro económicos; olhemos para a vida quotidiana das pessoas concretas.
Se algum voto faço para 2018 é a de um mundo menos  desigual.



quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

A violência que não desaparece


Por mais leis e quadros jurídicos que possam existir, não será possível, acabar com o mal e a violência que nos rodeia, a não ser por escolha ética. O mal é da natureza humana. Somos todos capazes de ser bons e maus, santos e demónios, vítimas e carrascos, explorados e exploradores..., como se existisse uma falha originária que nos impedisse de reconhecer o outro, seja quem for, como um individuo único e irrepetível a quem devemos respeito. A atitude é sempre de alerta e a ação é sempre a da responsabilidade individual: o que escolho fazer perante aquele a quem acolho e a quem devo respostas? 

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Um dia, talvez, terminem todas as atitudes racistas

Eu, também


Também eu canto a América
Sou eu o mais preto dos irmãos.
Mandam-me comer na cozinha
Quando chegam as visitas,
Mas eu rio,
E como bem,
E forte vou crescendo.

Amanhã,
Estarei à mesa
Quando as visitas chegarem.
Ninguém ousará
Dizer-me
Come na cozinha,
Então.

Aliás,
Eles verão como sou belo
E envergonhar-se-ão.
Também eu sou a América.

(saiu na Revista Pública de 14 de Outubro de 2001, retirado de Langston Hughes, 1925, Collected Poems)


sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Boas Festas

Desejo a todos, os que por aqui passam, um Bom Natal e um Bom Ano de 2018.

Deixo um poema, sobre  o racismo, ainda hoje a maior das discriminações:

É proibido publicar

Seria aborrecido se Cristo
Voltasse, e fosse preto.
Há tantas igrejas
Onde não poderia rezar
Nos Estados Unidos
Em que o acesso dos negros
Por santos que sejam, é proibido.
Em que se celebra
Não a religião
Mas a raça.
Experimentai dizê-lo
E pode ser que sejais
Crucificados.

(Langston Hugges, 1902-1967, Estados Unidos da América)


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

História de um encontro (4)

Ela sabe que se pegar no telefone e disser onde está voltará ainda hoje para casa. Sabe isso, mas sabe também que de novo voltará a fugir sem saber de quê ou de quem. Ele, ao contrário, sabe que não vai pegar no telefone, nem voltar para casa. Ela não quer, ele não pode, a situação é diferente.
Estranha sensação. Apesar de diferentes as situações e distintos os problemas há um sentimento comum de rejeição que ambos vivem. Num caso há desequilíbrio e incompreensão, no noutro há uma rejeição que destrói sentimentos. Ao velho, isso dói profundamente, sente-se humilhado e nada é pior do que isso. Ela sente que é rejeitada pelas suas opções que ninguém a entende e todos criticam. Ambos precisam que cuidem e se preocupem com eles.



domingo, 17 de dezembro de 2017

História de um encontro (3)

Olhando aquela adolescente, que podia ser sua neta, pensava: "que mundo é este, que sociedade é esta, onde não há lugar para os velhos e as crianças fogem de casa? Que vida familiar é esta que exclui os velhos e não tem tempo para ajudar os filhos a crescer e a viver a difícil adolescência. Que mundo é este em que tantos estão sozinhos, apesar das multidões e do excesso de comunicação"? O velho não foi capaz de conter as suas emoções e de calar os seus sentimentos. Sem querer, começou a chorar.
- Estás a chorar? - diz-lhe a jovem, olhando-o e tocando-lhe no rosto.
Também ela se comoveu, pela primeira vez, fala com ternura na voz, num misto de surpresa e de compaixão, afinal ele parecia sofrer tanto ou mais do que ela.
- Olha, eu sou a Cláudia, queres vir comigo? Levo-te para uma casa, já fora da cidade, onde vive uma amiga e onde às vezes costumo ficar. Anda, vem, vem...
Arrastado por ela, o velho deixa-se conduzir para fora da estação, sem perguntas, mas observando e pensando sempre.  Cláudia, ora corria, ora parava, dizendo coisas sem sentido - a contradição presente em alguém que sente raiva e culpa, por uma liberdade que quer e julga ter conseguido, mas que não lhe serve para nada, antes, a maltrata e prejudica. Cláudia não é capaz de cuidar de si, hoje, como em muitas outras noites, terminará no beco de sempre, prostituindo-se, bebendo ou consumindo outra droga qualquer, apesar da idade.
O velho pressente a situação mas não é capaz de dizer nada. Não é capaz. Que coisa é essa que o impede de dizer seja o que for ao mesmo tempo que questiona: «Para que quer Cláudia a liberdade se não sabe ou não pode ser livre».

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

História de um encontro (2)

- Tenho catorze anos e é a 4ª vez que fujo de casa. Mas, desta vez, não volto, não volto mais - repetia, convencendo-se a si própria de algo de que não estava segura. Mas também não quero ficar na rua - continuava. Leva-me para tua casa, preciso de alguém que goste de mim.
- A rua é perigosa - diz o velho, meio a perguntar, meio a afirmar, calando-se em seguida.  
Também ele estava na rua, também ele precisava de casa e de alguém que gostasse dele.  A jovem insiste:
- Fala, diz alguma coisa, vais viajar? Aonde vais? Sabes porque é que a “bófia” me queria apanhar? Porque não perguntas nada?
O velho aturdido pensava «não vou para parte nenhuma, ou talvez vá para o fim de mim mesmo». Nada é mais inevitável do que o fim e ele pressentia-o.
- Caraças, não percebo, não dizes nada? Não falas? Olha, já jantaste? Queres jantar?
Duas razões, dois discursos, provavelmente diferentes sentimentos, uma mesma situação: uma jovem menina e um adulto, já velho, vagueando pela cidade, sem casa e, aparentemente, sem família e sem saída. Por fim, o velho fala:
- Vivia há muito com o meu filho. E também há muito  que deixei de ter privacidade e de sentir ajuda. Hoje, deixei de ter espaço, deixei de ter espaço ... - repetia o velho, calando-se de novo.
Tinham-lhe desfeito a cama, ocupado o quarto e feito as malas. Iria viver para um lar de idosos, onde fora inscrito contra sua própria vontade. Era demais, não suportou. Pegou num pequeno embrulho, que guardava numa gaveta da cómoda, e saiu destroçado. Não deixou nada escrito, não se despediu de ninguém, simplesmente saiu de sua casa, da sua casa.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

História de um encontro (1)

(Uma história real,  um velho e uma adolescente que saem de casa, um filme a que assisti, há muitos anos, julgo que na televisão espanhola, de que não sei precisar nem o título, e que conto de memória).


 Um velho de olhar triste vagueava sem sentido pela cidade. Era noite e um frio intenso invadia-lhe o corpo e a alma. Contudo, era Verão. Cansado, senta-se num banco de uma, quase deserta, estação de comboios.
Cabeça baixa, segura contra o corpo um embrulho que guarda como se fosse a última coisa que lhe resta. O velho está só, sofre, num silêncio, que magoa quem o observa. Disfarça a custo as lágrimas que teimosamente lhe caem no rosto. De olhos semi-cerrados parece passar em revista toda a sua vida, todo o seu sofrimento.
De repente, de dentro dos arbustos do pequeno jardim contíguo à estação, sai uma jovem mulher, quase criança, fugindo de uns polícias. Grita, abraçando-se ao velho:
- Avô, avô, que bom encontrar-te.
- Este é o meu avô - diz, dirigindo-se a um dos polícias.
Ele não entende. Não podia entender, mas sente que aquela criança precisa de ajuda. Entra no jogo e corresponde ao abraço e ao cumprimento da “neta”. Abraçados permanecem unidos por alguns instantes, enquanto os polícias, embora desconfiados, se vão afastando na direcção contrária à estação.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Dia Mundial dos Direitos Humanos, 10 de Dezembro

Em 10 de Dezembro de 1948, em Paris, é proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. São trinta artigos, que encerram os direitos individuais, civis e políticos; os direitos económicos, sociais e culturais; os direitos de toda a humanidade, sem excepção.
Todos os homens nascem livres e iguais, dotados de razão e consciência devem  viver uns com os outros em espírito de fraternidade (1º artigo, citado de cor).
Liberdade
Igualdade
Fraternidade

( ficam enunciados todos os valores humanos)

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Jerusalém, de algum modo todos pertencemos aí

Não quero que Jerusalém seja a capital do estado de Israel. Preferia que fosse uma cidade de todos, crentes e não crentes; preferia uma cidade símbolo, uma cidade aberta, tolerante e não uma cidade onde todas as ortodoxias se degladiam.
Estive em Jerusalém há mais de trinta anos e a imagem que guardo é a da mais profunda divisão entre judeus e muçulmanos. Não pudemos entrar numa das portas que dão acesso à cidade santa, porque havia confrontos; a mesma coisa em Belém, muito perto da igreja que visitámos, na gruta dos pastores havia tiros, não pudemos ir lá. Mas a guerra não vem de hoje nem é de há trinta ou setenta anos. Quando olhamos aquela porta de Damasco, toda esburacada pelas balas, algo se transforma em nós: “O que é isto? Porquê?” 


terça-feira, 5 de dezembro de 2017

As lágrimas do Papa, encontro com um grupo de rohingyas


O Papa encontrou-se com um grupo da minoria rohingya, refugiados no Bangladesh, depois de perseguidos no seu país, Myanmar, que não lhes reconhece a cidadania e, portanto, os priva de qualquer direito. Considerados apátridas, vivem numa pobreza e numa precariedade extremas. São muçulmanos, mas isso não importa para este Papa, o que importa é o humano, o ser humano.
O Papa disse-lhes “Deus está presente aqui; Deus também é rohingya”. E está e é mesmo, tenha o nome que tiver. A ideia de Deus estar no sentir, nas lágrimas, nas emoções, nos pensamentos, nas vidas cortadas, humilhadas, sacrificadas..., transporta uma humanidade que dá alento e reconforta; mas não chega, é preciso mais, muito mais. Vamos ver o que fazem as Nações Unidas que devem ter valores universais e não a política dos interesses nacionais ou regionais.


quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Sobre a justiça, para lá da universalidade das leis

Perante tantos problemas sociais, muitas vezes, tendemos a considerar: “isto não tem nada a ver comigo; pago impostos, elejo representantes, quero leis e instituições justas que assegurem as respostas a que todos os cidadãos têm direito, sem que os meus próprios direitos sejam ignorados, questionados ou violados”. 
Ainda assim, perante tantas injustiças, temos de considerar: “isto tem a ver comigo; não posso continuar instalada, rodeada das minhas certezas, das minhas comodidades e dos meus interesses, como se nada fosse, como se nada estivesse a acontecer”. 

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Prisão perpétua para Ratko Mladic

O TPI, Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, acaba de condenar a prisão perpétua, por 11 crimes de guerra, entre 1992-95, o conhecido por carniceiro dos Balcãs. O homem parecia agitado, gritava contra o que ouvia, teve de ser retirado e colocado noutra sala. Não sei se é loucura ou se é fúria do mal; preferia que fosse loucura, o que mostraria que, talvez, em algum momento da sua vida, aquele sujeito tinha tomado consciência do que fez; mas temo que seja apenas maldade, julgando-se injustiçado, mesmo depois do massacre de Srebrenica (mais de oito mil mortos), mesmo depois da limpeza étnica contra os muçulmanos da Bósnia. Prisão perpétua é o justo para este assassino.




terça-feira, 21 de novembro de 2017

Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951)

Há uma convenção - a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados – que define, logo no 1º artigo, quem pode ser considerado refugiado:  "é refugiado qualquer pessoa que no seu país tenha a sua vida em perigo, por causa da guerra ou de perseguições, tendo por isso o direito a ser acolhida noutro país.
Qualquer pessoa, nestas condições, pode pedir asilo, a um país assinante da Convenção, tendo o direito a ser acolhida de forma digna e a ver garantidas as condições vida, como a alimentação, a habitação, a saúde, a educação, o trabalho, o respeito pelas crenças e valores..., para que a sua integração seja possível.
Acolher refugiados, obriga os Estados a  definir políticas ativas e planos de ação que respondam de forma adequada às situações concretas.  

sábado, 18 de novembro de 2017

Os direitos do outro, convocando Lévinas

Os direitos humanos – os direitos do outro ser humano – incumbem a cada um de nós e não, apenas, aos Estados e instituições que, progressivamente, têm vindo a criar leis para controlarem a violência, para garantirem condições mínimas de vida e de sobrevivência. Contudo, não é animador o que existe e o que nos espera, só um compromisso mais radical, mais originário, pode criar a responsabilidade e a fraternidade universais, algo anterior ao Estado e às leis, presente no face a face de que fala Lévinas, nesse encontro com outro, a quem acolhemos como rosto e não como objecto, seja esse outrem quem for e esteja em que situação ou circunstância estiver.  

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Gandhi, o filme

A primeira cena é o assassinato de Gandhi (30-1-1948); um jovem hindu irrompe pela multidão, parecia ser um admirador que lhe quer falar, mas não, puxa de uma pistola e atira. Depois, o filme prossegue, com Gandhi, em 1893, advogado, que estudou em Londres, numa carruagem de 1ª classe, na África do Sul, à época, também, parte do império britânico. Como nenhum negro podia viajar senão em 3ª classe, mandam-no mudar-se; não obedece, e é posto fora do comboio.
É-lhe dito que não poderá ser advogado, pois, nenhum advogado negro (os indianos são considerados negros) pode exercer a sua profissão; a segregação racial é muito violenta, até os passeios públicos são destinados unicamente a brancos. Começa ali a luta pelos direitos da sua comunidade, juntamente com outros indianos, hindus e muçulmanos, não importa a religião que tenham. O primeiro passo é queimar o “salvo conduta”, um documento com que todos os negros tinham de andar. A seguir, constroem uma comunidade – ashram – onde todos são e vivem como iguais, onde todos fazem de tudo, onde não há senhores nem servos, onde não há intocáveis. A cena em que a sua mulher se queixa: “tenho de limpar latrinas”? - é particularmente reveladora, Gandhi quase se altera, e ela percebe tudo o que está em causa (será até à morte uma companheira de todas as horas).
Começa a discursar, a passar ideias de não-violência, de resistência pacífica, e, mais do que tudo, a dar o exemplo, a agir. “Não terão a minha obediência” - é o grande lema da sua luta. Os tumultos levam a uma lei que endurece a vida da comunidade, os indianos perdem direitos. Gandhi é preso; algum tempo depois, a lei é revogada.
Em 1915, regressa à Índia, já não de fato e gravata, mas com o fato tradicional indiano, como se procurasse uma identidade profunda, que sabe só ali existir, quer ser como todos os outros. A sua chegada é um sucesso; é aclamado como um herói nacional (conhecem a sua luta e o que conseguiu), é recebido pelos poderes indianos que se opõem aos britânicos.
Percorre a Índia de comboio, quer conhecer, saber, sentir...; a pobreza é geral e impactante, está com a mulher e com Charlie, o pastor evangélico que o segue e se identifica com a luta dos indianos, ao ponto de se misturar com os hindus. Naquele comboio, a religião não divide as pessoas, não as coloca numa situação de estranheza. Alguém lhe pergunta: “é cristão?” “sim, sou cristão”. Ainda assim, Gandhi faz-lhe ver que: “o que deve ser feito, só deve ser feito por indianos”; o jovem compreende e afasta-se.
Gandhi fala com o povo; escuta o homem obrigado a cultivar “indigo”, uma planta para fazer tinta e tingir os tecidos fabricados em cidades inglesas. Os indianos não podem cultivar o que querem; cultivam apenas o que os britânicos querem, o que lhes dá lucro e sustenta uma economia colonial, onde os beneficiados são sempre os mesmos. Cultivam algodão e outras fibras vegetais que são transformadas em tecidos e em roupas, vendidas depois aos indianos.
A cena em que queimam a roupa e tomam a atitude de voltar ao velho tear é bem significativa do que pode acontecer à economia britânica. É o primeiro a fazê-lo, a imagem parece irreal, quase do princípio dos séculos, mas o que importa são as consequências. O mesmo com o sal, deixar de comprar o sal vendido pelos britânicos e começar a fabricar o próprio sal.
Mas, nem todos os que o seguem pensam o mesmo; há os que entendem que é preciso agir pela força, que a não violência, a não cooperação, não leva a lado nenhum. Gandhi entende que não se trata de uma resistência passiva, e tem razão; desgastou de tal modo o poder britânico que, em agosto de 1947, se organizou, em Londres, uma conferência sobre a independência da Índia. Gandhi está presente, defende a ideia de uma Índia unida, entre muçulmanos, hindus, judeus,siques, cristãos …; uma Índia de todos, a mesma ideia de comunidade, de ashram, onde todos fossem e se sentissem iguais. Mas a dimensão da Índia é incomparável à comunidade que fundou na África do Sul, não param as lutas entre os indianos e, quando se dá a transferência do poder, a ideia de uma Índia unida, é já impossível. O Paquistão separa-se. A Índia para os hindus e o Paquistão para os muçulmanos; afinal, o argumento religioso usado pelos britânicos estava presente e era determinante.
Mesmo depois do estado indiano, os tumultos entre as comunidades religiosas continuam, há lutas, separações, deslocados, miséria humana...Gandhi vai a Calcutá, hospeda-se na casa de um muçulmano, jejua até que terminem os tumultos, diz às autoridades indianas: “não posso assistir à destruição da Índia”, pede que nenhuma espada hindu se lance contra um muçulmano; está quase a morrer quando lhe dizem que os tumultos terminaram em todo o lado. Resiste. Toma água com limão, levanta-se, volta ao caminho. Foi assim ao longo da sua vida, prisões, jejuns, orações, atitudes...,
Quem foi Gandhi para os indianos? Quem foi Gandhi para o mundo? Não chega dizer que foi uma Alma Grande (Mahatma), não chega dizer o que fez e pelo que lutou. Há um para lá de Gandhi de que não podemos falar (de que não sabemos falar) e que é, ainda hoje, um sentido.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A dignidade humana, uma espécie de tesouro interior

O que é a dignidade de uma pessoa, vocês sabem? De um modo muito simples, podia dizer-vos que é aquilo que de mais precioso cada um de nós tem, uma espécie de tesouro interior que se manifesta na nossa vida e nas nossas acções, quando agimos de acordo com os nossos valores e as nossas crenças, ou seja, aquilo em que acreditamos profundamente.
Como todos os tesouros, tem um valor incalculável, por isso, deve ser estimado pela própria pessoa e pelos outros. Nesse tesouro, guardam a vossa liberdade, a vossa capacidade de projetar coisas, de ter iniciativas, de realizar projectos.... - e também aqueles valores em que acreditam convictamente que são os da vossa família, da vossa cultura, da vossa religião....; valores que marcam a vossa vida e de algum modo determinam o modo como querem viver e ser considerados pelos outros. 

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

O êxodo da minoria rohingya da Birmânia

Estou tão decepcionada com a presidente da Birmânia - Aung San Suu Kyi -  prémio nobel da paz, que não sei o que dizer. Obviamente que há perseguições, limpeza étnica..., mas porque fecha ela os olhos? Porque se deixa dominar pelos militares? Mais valia resistir exemplarmente, do que deixar-se enredar nos meandros de um poder e de uns interesses de que não consegue sair. 
Pobre natureza humana, quando pensamos que há heróis e heroínas, é isto!

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Por que morrem os meninos, desprotegidos, na Guarda?

Há muito pouco tempo uma mãe, em estado grave de depressão, tenta suicidar-se a ela e ao filho, de nove anos, dizendo que não quer que o filho vá para o 5º ano numa escola da cidade e continue a sofrer de bullying (o que parece não ser verdade); o menino morre e ela é levada para o hospital.

Há dias atrás um menino de dois anos é colhido por um comboio sem que a mãe, à guarda de quem estava, estivesse por perto.

Agora, um menino de sete anos, sozinho, em casa da namorada do irmão,  cai de um terceiro andar e morre. A mãe, que tinha ficado de o ir buscar e não foi, é encontrada alcoolizada...

Porque é que falham estas mães? E as famílias? E as instituições?


sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Retomo o blog - Moçambique: rostos do Índico

Vou publicar no blog:  mocambiquerostosdoindico.blogspot.com
uma série de textos que escrevi, em princípios de 2011, e que por pudor não coloquei no blog, tem a ver sobretudo sobre a legitimidade ou não de escrever sobre pessoas, invadindo a sua privacidade. Terei esta preocupação bem em conta,  mesmo que as pessoas de quem falo estejam lá longe, muito longe, a milhares de quilómetros.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Catástrofes mentais: o chefe da Coreia do Norte

Não sei o nome, não o fixo; recuso-me a fixá-lo. Quando o vejo, parece-me ver um demente, um perigoso demente, que pode levar o seu país à ruína total e o mundo a uma guerra, com consequências inimagináveis. Como é que isto acontece, no século XXI, depois de tanta racionalidade, ciência, filosofia, história...?
Parece impossível de compreender, como um ditador transforma o seu povo em autómatos, parecem robots, fazendo vénia ao chefe. Se isto não fosse tão grave, seria anedótico, mas  não  é, infelizmente.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Catástrofes naturais

As catástrofes naturais sucedem-se, cada uma pior que a outra; são os furacões, as inundações, os tremores de terra..., e lá vêm as explicações científicas:  o aquecimento global, as mudanças climáticas, o desgoverno mundial em relação à natureza....
Tudo isto é verdade, é é preciso tomar medidas, contudo, não podem ser contra a natureza; as pessoas vêem as suas casas levadas pelo vento ou inundadas pela água e continuam a reconstruir nos mesmos sítios e da mesma maneira, sujeitas, inevitavelmente, às mesmas contingências.  Não podemos habitar a terra em conflito com os elementos naturais.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Os emigrantes paquistaneses, nepaleses... ou de outros países asiáticos

Começou a chover, ainda, coisa pouca;  continuam a pintar. Pintam grandes prédios em Lisboa, em andaimes suspensos, presos por cabos, aparentemente, em segurança. Vieram de tão longe e correm tantos perigos! Fazem-no devagar, com precisão, bem, mesmo que nunca o tenham feito antes.
A chuva continua, é já intensa; e cada vez mais. Os pintores desceram do andaime, pararam de pintar, não por causa deles, mas porque a tinta não pega com tamanha chuva.
Será que no final do dia recebem o seu dinheiro ou alguém, instruído na exploração de nepaleses, paquistaneses...lhes diz: - hoje não trabalharam o tempo todo, tenho de lhes descontar as horas que estiveram debaixo do toldo (improvisado), sem fazer nada. 
A chuva parou. Os trabalhadores estão de volta ao andaime; estão de volta ao trabalho e às ordens de um patrão que lhes devia assegurar todos os direitos, mas nem sempre é o que acontece.


sábado, 2 de setembro de 2017

O racismo na América e por muitos lados

Na cidade de Charlottesville, estado da Virginia, e em outros lugares houve manifestações neonazis, numa linguagem e em termos que julgávamos ultrapassados: a supremacia branca, o ultra nacionalismo... O ódio é o mesmo, contra quem é diferente, sejam judeus, negros, ciganos...; o presidente assiste, não toma, a tempo, a reação devida, e o problema agrava-se.
Pensamos: como podem sociedades tão diversas viver tão desintegradas! Como podem sociedades tão múltiplas viver como se as minorias não existissem e não tivessem direitos!
Começamos a achar que o andar para trás, em valores e em princípios, é uma realidade. Começamos a achar que se instalou uma loucura qualquer que não nos deixa ver claro e, entretanto, muitos dos que estão a salvo cuidam das suas vidinhas, fecham as janelas e as portas, têm medo.
Mas o mesmo não pode acontecer quando há organizações internacionais (ONU e suas Agências, Conselhos mundiais...), com força normativa e por isso têm o dever de agir, de mostrar ações contra quem for e esteja onde estiver: na América, na Europa, no Médio Oriente, na Ásia, onde for.


sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Gracias à la vida, o CD de Joan Baez

Por acaso, vi na RTP2 o espetáculo de Joan Baez comemorativo dos seus 75 anos, com muitos convidados, quase sempre cantando em dueto e pensei na importância que ela tinha tido para mim num certo período de tempo, nos anos oitenta, sobretudo.
Fui à estante dos  CD'S e encontrei este que ouvi repetidas vezes. Ainda bem que existem pessoas como Joan Baez: sensível,  comprometida, límpida, caminhante..., como se a vida dela fosse sempre futuro. Um futuro que nos convoca a todos, presente naquelas canções de raiz latino-americana.



sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Terror em Barcelona

É certo, como parece ter dito o rei de Espanha: “todos somos Barcelona, todos estamos nas Ramblas”, no sentido de dizer que o que se passou como uma coisa de todos, de cada um, é verdade, se há problema global, o terrorismo é um deles, condená-lo, absolutamente, ocorra onde ocorra, é um dever de todos.
A maneira como matam, como escolhem os momentos, mostra que estes assassinos estão organizados, tem uma ideologia de morte que está longe de ter os dias contados.


sexta-feira, 11 de agosto de 2017

A força de uma consciência, todos os que resistem

Não há dúvida de que existem poderes políticos, económicos e sociais que ignoram e defraudam as justas expectativas das pessoas e dos povos, naquilo que é o seu ser fundamental: a dignidade, o respeito, a liberdade, a democracia...
É certo que se pode dizer que sempre houve corrupção, interesses obscuros, ditadores, tiranias ..., mas igualmente se pode dizer que sempre houve resistentes,  consciências que se rebelam, que se enfrentam, que estão aí, como a Procuradora Geral da  Venezuela e toda aquela gente conhecida ou anónima que resiste.

domingo, 6 de agosto de 2017

Apupos para Maduro, a Venezuela

Olho as ruas da Venezuela, as manifestações em Caracas e noutros sítios; olho as pessoas, cada uma delas, única, desigual e irrepetível, se alguém morre de algum modo todos morrem...

Não olho a massa indiferenciada, não olho o pensamento comum, não olho a deriva, as palmas ao chefe, a unanimidade imposta...

Denuncio, como muitos, o atropelo da ordem constitucional, aos direitos humanos, à democracia,  à Procuradora Geral da Republica... 


terça-feira, 1 de agosto de 2017

Ter uma terra, sentimento de pertença

Ter uma terra é ter uma referência, um chão, uma raiz…; é ter um lugar, onde regressamos sempre que precisamos, física ou mentalmente.

Quantos saíram, passaram anos, longe, mas, de algum modo, sempre, estiveram aqui, acredito que aconteceu isso com os que emigraram para França ou outros países e lugares.

A terra é um lugar de encontro, de sentido, de viver com os outros, um sentimento de pertença a uma família, a uma comunidade, a  uma maneira de viver, a uns hábitos, a uma cultura, a uma maneira de ser. 

Ter uma terra, é muito: é uma identidade.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

O senhor Maduro, Venezuela

A cartilha  ideológica,  a gritaria,  a impossibilidade de perceber o fundamental, levam o  país para o abismo. Não sei se são os homens que mudam, se são as circunstâncias que os  obrigam a mudar, sei  que o poder transforma, corrompe, embebeda. Maduro é a face visível de uma ditadura,  a fome, a violência e a falta de liberdade mostram  um caos social e político que tem tudo para se agravar.

sábado, 29 de julho de 2017

O velho escravo deseja a morte

Só tens preço, se tens força, se dás lucro, nas plantações, nos engenhos...; embora não possas pôr um pé fora do carreiro e das ordens do patrão, tens comida; mas se já não aguentas trabalhar, arrastas-te, como podes, com doenças e misérias sempre em maior número.

Tudo é indigno, desmedidamente repugnante; há o cá e o lá, o abismo de dois mundos, onde só um tem direitos, dita as leis, decide da vida de tantos seres humanos; o abismo entre o ser e o não ser, entre a existência e a sobrevivência mais absolutas, acentua-se.

O homem velho entra na cabana, abraça a mulher e chora, chora convulsivamente, chora por tudo e por todos, sente-se gente. O amor de alguém é a única coisa que parece restar-lhe. O amor de alguém, sentimento profundo, às vezes, decisivo, por isso, se vive, se sobrevive, se aguenta.

Mas há sempre um limite, resta o silêncio, um imenso silêncio; o velho escravo deseja a morte.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

"Primeiro o senhor", princípio das relações humanas

Quem são as pessoas que me interpelam? São pessoas concretas, com vidas concretas, algumas, até, pessoas a quem julgo conhecer bem e de quem, aparentemente, poderia falar, mas por mais que eu pudesse dizer acerca delas, nunca diria verdadeiramente quem são.
O outro é sempre uma alteridade, uma separação, é e permanecerá um desconhecido. Contudo, não se trata de uma ficção minha, está ali, fala-me, interpela-me, exigindo-me respostas. E eu o que faço? Posso decidir responder ou continuar instalada, desatenta, como se nada fosse, ou posso agir, aproximar-me, responder ao apelo.
A escolha é minha, a questão é decididamente ética, sou eu que decido se quero ou não o encontro face a face com o outro.

sábado, 22 de julho de 2017

Os ciganos de Loures, todos os ciganos

Sempre a forma e o tom importam ao conteúdo, mas este é o mais importante. Sou contra a discriminação de qualquer minoria; sei que os ciganos são, em Portugal, muito estigmatizados, a todos os níveis e também na escola. Já, há uns anos atrás, juntamente com outras pessoas, fiz um trabalho e um encontro para tentarmos perceber a realidade dos alunos ciganos e o resultado não foi animador.
Os ciganos  têm, como todos os outros cidadãos portugueses, direitos e deveres, isto a mim parece-me claro,  a questão é conjugar isto com aspetos culturais próprios que, em grande medida, definem a sua identidade.

domingo, 25 de junho de 2017

Tagore, poeta indiano

As raízes
são ramos debaixo da terra;
os ramos, raízes no ar.


Os montes são gritos de meninos,
que levantam os braços
porque querem as estrelas.

( aforismos, in O coração da Primavera, Tagore)

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Os falsificadores, o filme

É um filme sobre a falsificação da libra esterlina pelos nazis que se preparavam, também, para falsificar o dólar americano, já, no final da II Guerra Mundial.

Um grupo de judeus é deportado para um campo alemão, onde se dedicam à falsificação de moeda. O falsificador foi preso em Berlim pelas SS e levado para esse campo para se aproveitarem das suas habilidades; o mesmo aconteceu com todos os outros, uns percebiam de tipografia, outros de grafismo, outros de dinheiro e de bancos…. Era assim, sempre que os prisioneiros tinham capacidades de trabalho que interessavam à estratégia nazi, eram poupados à morte.

Este falsificador é tratado com alguma deferência, os alemães sabem bem que precisam dele e por isso dão-lhe condições de trabalho, materiais, ajudantes… para que se torne num falsificador perfeito. No grupo, há diferentes sentimentos: uns querem conspirar contra os alemães e negarem-se a colaborar; outros fazem tudo para sobreviver, quando pensam no fuzilamento imediato, se ousassem fugir e fossem apanhados. Uns deixam a sua parte psicológica arruinar-lhes os dias, outros continuam cerebrais e manipuladores, fazendo o jogo do inimigo, não deixando que lhes aprisionem o pensamento – é o caso do falsificador. Tem consciência do seu valor para os alemães e permite-se esticar a corda, até um dia.

Durante muito tempo, vai enredando, para evitar colaborar na falsificação do dólar, dá desculpas: é a gelatina, é o papel, é a máquina tal...; enfim, o comandante do campo percebe, mas não pode fazer muito mais, pressiona-o, porque também é pressionado. Ameaça-o: “há quem o substitua, não é o único a falsificar notas”!
O falsificador resiste. Tem um olhar de dureza que, às vezes, perturba; mas, mesmo sem quebrar, pressente-se que vive um tormento interior, por exemplo, quando um dos jovens do grupo adoece, gravemente. É visto pelo médico do campo, pensa-se que é tuberculose, mas não há medicamentos; o falsificador vai fazer tudo para os conseguir. Vai a casa do SS, o comandante do campo, com a receita, e pede-lhe: “arranje-me estes remédios e em troca falsificarei o dólar. Se encontrar os medicamentos, arranjarei maneira de falsificar o dólar”. E o comandante arranjou-os.
Entretanto, os russos tomam Berlim, os nazis destroem o campo e as máquinas de falsificar moeda, para que não se soubesse o que ali se fazia.
Na realidade, os judeus desse campo fogem, no fim da guerra, numa carruagem, são intercetados e presos, mas libertos, algum tempo, depois; alguns ainda vivem.
O filme começa com o falsificador numa praia, no Mónaco, depois de perder uma grande quantia de dinheiro no casino e termina, no mesmo sítio, agora, já com uma jovem bailarina que lhe diz: “foi muito o dinheiro que perdeu”! “O dinheiro não é problema – responde-lhe”.

Talvez, o mais forte do filme tenha sido ver o falsificador disposto a tudo, para salvar o jovem russo; a força duma amizade e o sentido profundo de uma identidade (cultural, religiosa…) são inexplicáveis.   



quarta-feira, 7 de junho de 2017

Quem tem medo de Virgínia Woolf?

Fui ver a peça, ao teatro da Trindade, Lisboa, e confesso que não me senti completamente confortável. Tudo se passa na sala de estar do casal, George e Martha, depois de uma festa na universidade do pai de Martha, onde o marido é professor de História, primeiro, esperando o jovem casal, ele é o novo professor de Biologia, que dormirá essa noite em casa deles, depois, os quatro em cena.
O ambiente é excessivo, doentio, quase esquizofrénico; expõem-se, de forma crua, raivas, não ditos, aparências, futilidades..., para humilhar, simplesmente, numa escalada, que parece sem retorno. A humilhação é o pior dos males; humilhar alguém, é anular a sua autonomia, a sua estima, a sua liberdade; é dizer: "não és nada, não vales nada; posso pisar-te, vou pisar-te"; melhor ainda, se houver assistência, no caso, a do jovem casal - durante uma parte da peça, Martha faz isto com mestria.
Mas, George, apesar da humilhação da mulher, também não é santo, é ele que serve: “mais uma bebida, mais uma bebida”…; é ele que antevê e incita à traição da mulher com o jovem professor, é ele que cria jogos de linguagem e de poder (na verdade, só ele não está perdido de bêbado), para os levar a confessarem o que na realidade são. E ele, nesse jogo, quem é na realidade? E o filho, morreu ou nunca existiu?
 Certo é que, depois, dessa noite de bebedeira, é muito álcool, o casal voltará à mesma violência emocional, às mesmas realidades ou ilusões, nunca se percebe muito bem, em que aprendeu a viver, como se estivesse preso numa teia.


segunda-feira, 5 de junho de 2017

Viagem à Índia (4)

O hinduísmo é uma religião muito arcaica,  mas talvez todas o sejam.  “Todas as religiões são iguais”, lembro-me de ter pensado, a certa altura, numa visita a um templo sique. Todas têm uma transcendência, povoada de muitas ou poucas divindades, todas têm rituais, mais ou menos incompreensíveis, para quem vê de fora, todas têm grandes ou pequenos templos, igrejas, mesquitas…;todas têm ramificações, hierarquias, poderes…
A religião é quase uma necessidade; uma necessidade humana, não dos deuses, porque há um mundo interior, um espírito, uma alma...,  que nos leva  a esse para lá, ilimitado,  perfeito, absoluto, não contingente..., única forma de pensar o limitado, o imperfeito, o relativo, o contingente... (sempre, o célebre argumento ontológico a fazer-se notar).  

terça-feira, 23 de maio de 2017

Viagem à Índia (3)

As pessoas, quase, não nos olham; falo daquelas que andam pelas ruas, permanecem junto às estradas, em pequenos negócios ou noutras ocupações, fazem colares de flores, junto aos templos, pedem esmola aos turistas…, parecem ausentes.

A mulher do semáforo. Era quase noite, já se via muito mal, num cruzamento de Nova Deli, uma senhora, com um filho ao colo, magra, muito magra, quase esquelética, aproxima-se dos vidros e pede esmola. Uma pessoa dá-lhe algum dinheiro (bastante até); ela agarra-o, amarrota-o dentro da mão e em momento algum olha a senhora que tenta comunicar com ela. Quase desvia o olhar, como se muros invisíveis a separassem  dos outros.
Ficará ali, à espera de outros turistas e de outros autocarros, para mais uma vez se dirigir aos vidros, de olhar perdido, pedindo esmola; ou deixará aquele cruzamento e aquele semáforo, quando perceber que a quantia é suficiente para comprar comida e alimentar os filhos.

O rapaz aprendiz de motorista.  Dizem que tem dezoito anos, mas aparenta menos. Fala pouco ou nada, mas está sempre atento e disponível para tudo. Está ali, porque tem de fazer um estágio de três anos, andar à beira de uma motorista já profissional, para poder vir a ser, no futuro, um motorista daquela empresa.
Quando nos deixam no aeroporto e nos despedimos, do guia, do motorista e deste jovem aprendiz de motorista, com um aperto de mão, faço-lhe uma festa na cabeça e digo-lhe algo, em inglês, para lhe mostrar como tinha sido importante o trabalho dele durante todo o circuito e desejar-lhe boa sorte na vida. Fica muito surpreso, não estava à espera, mas, sorriu e não baixou a cabeça: olhou para mim. Depois, fiquei a pensar: talvez, culturalmente, não tivesse sido muito propositado aquele gesto, mas quero lá saber de cultura, quero saber de gestos humanos.

O menino órfão. Cinco ou seis crianças rodeiam o grupo de turistas que visitam as ruínas duma cidade abandonada, há séculos, por falta de água, para venderem bugigangas ou pedir esmola. Quando subimos, pergunto a um deles: - por que pedes esmola, não vais à escola?
- Não tenho pai, não tenho mãe, vivo com uma avó.
Quando desço, o mesmo menino, continua: - não tenho irmãos, tinha uma irmã, mas morreu há pouco.
Comecei a achar que era demais, não precisava de tantos dramas, para conseguir uma nota dos turistas.
Pergunto ao mais crescido do grupo: - isto é verdade?
- É verdade, dos meninos daqui, é o que mais precisa.
Acredito. Dou-lhe uma nota. Afasta-se todo contente e eu fico a pensar: pode ser estratégia para convencer turistas, mas temo que esteja a falar verdade. 


sábado, 29 de abril de 2017

Viagem à Índia (2)



Em viagens turísticas, como a que fiz, só vemos uma parte (pequena) da realidade. Temos a sensação de viajar dentro de uma bolha. Preservados de tudo, em hotéis bons, autocarros novos, com ar condicionado, motorista, guia e ajudante, cumprindo um roteiro que não deixa muita margem a iniciativas individuais.
Devem existir ruas, mercados, praças..., onde a multidão seja visível, mas, nesta viagem, nunca pude observá-la. Onde estão os milhões de indianos? Onde estão “presos”? Quem os "prende"?
Há coisas que impressionam pela grandiosidade: as fortificações mongóis, com vários palácios dentro, as cidades abandonadas, os monumentos como o Taj Mahal, marcas de uma Índia estratificada de há duzentos ou trezentos anos: os reis e a plebe, os marajás e o povo.
Mas, para mim, foi particularmente intrigante a visita panorâmica a Nova Deli, depois de uma manhã a visitar os monumentos da antiga cidade. Quase tudo é herança britânica, uma cidade administrativa, monumental, com grandes avenidas, um arco de triunfo, praças..., muitos parques verdes, zonas residenciais, palacetes individuais, em zonas fechadas, onde, antes, viviam os funcionários da coroa, hoje, destinados a serviços do Estado. 
Quando passamos junto aos edifícios do Estado, palácios do presidente e do 1º ministro, ministérios, parlamento..., o guia avisa: “aqui não se pode parar, nem descer, aqui, nenhum carro particular pode circular, nós passamos, porque é turismo. Só duas vezes por ano (em dias nacionais) as pessoas comuns podem visitar esta parte da cidade".
Afinal, Nova Deli (ou parte) é uma cidade proibida, para o comum dos indianos; aberta, sem muralhas, mas vigiada, destinada a governantes, políticos, funcionários e afins... Não se compreende.

sábado, 22 de abril de 2017

Viagem à Índia (1)



Estive na Índia, em setembro de 2016; passei a limpo algumas notas, que tinha em folhas soltas, mas não fui capaz de escrever mais nada. Estava cansada, mas não era só isso, sentia como que uma impossibilidade interior.
A Índia baralhou-me um bocadinho; não estava à espera de uma marca cultural tão presente (como o sistema de castas e subcastas, que eu julgava ultrapassada e afinal só não existe na lei) e tão impeditiva de um desenvolvimento que chegue a todos.
A realidade ultrapassou as minhas piores previsões, desde logo, a pobreza, que toda a gente refere, a sujidade, inimaginável, o lixo por tratar, as entradas, as avenidas e as ruas das cidades caóticas, as vacas sagradas, vagueando pelas autoestradas, nas cidades, no trânsito..., em completo desleixo, não parecerem ser de ninguém, sujas, maltratadas, magras...Um enigma, para não dizer uma irracionalidade, como tantas outras.
Decididamente, a cultura é para mim a questão mais premente, sem a qual o país não sairá deste impasse, onde tão depressa estamos no primeiro dos primeiros mundos como mergulhamos na mais profunda Idade Média, como se tudo fosse normal. Não é normal.