Pesquisar neste blogue

Mostrar mensagens com a etiqueta adolescência. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta adolescência. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

História de um encontro (4)

Ela sabe que se pegar no telefone e disser onde está voltará ainda hoje para casa. Sabe isso, mas sabe também que de novo voltará a fugir sem saber de quê ou de quem. Ele, ao contrário, sabe que não vai pegar no telefone, nem voltar para casa. Ela não quer, ele não pode, a situação é diferente.
Estranha sensação. Apesar de diferentes as situações e distintos os problemas há um sentimento comum de rejeição que ambos vivem. Num caso há desequilíbrio e incompreensão, no noutro há uma rejeição que destrói sentimentos. Ao velho, isso dói profundamente, sente-se humilhado e nada é pior do que isso. Ela sente que é rejeitada pelas suas opções que ninguém a entende e todos criticam. Ambos precisam que cuidem e se preocupem com eles.



domingo, 17 de dezembro de 2017

História de um encontro (3)

Olhando aquela adolescente, que podia ser sua neta, pensava: "que mundo é este, que sociedade é esta, onde não há lugar para os velhos e as crianças fogem de casa? Que vida familiar é esta que exclui os velhos e não tem tempo para ajudar os filhos a crescer e a viver a difícil adolescência. Que mundo é este em que tantos estão sozinhos, apesar das multidões e do excesso de comunicação"? O velho não foi capaz de conter as suas emoções e de calar os seus sentimentos. Sem querer, começou a chorar.
- Estás a chorar? - diz-lhe a jovem, olhando-o e tocando-lhe no rosto.
Também ela se comoveu, pela primeira vez, fala com ternura na voz, num misto de surpresa e de compaixão, afinal ele parecia sofrer tanto ou mais do que ela.
- Olha, eu sou a Cláudia, queres vir comigo? Levo-te para uma casa, já fora da cidade, onde vive uma amiga e onde às vezes costumo ficar. Anda, vem, vem...
Arrastado por ela, o velho deixa-se conduzir para fora da estação, sem perguntas, mas observando e pensando sempre.  Cláudia, ora corria, ora parava, dizendo coisas sem sentido - a contradição presente em alguém que sente raiva e culpa, por uma liberdade que quer e julga ter conseguido, mas que não lhe serve para nada, antes, a maltrata e prejudica. Cláudia não é capaz de cuidar de si, hoje, como em muitas outras noites, terminará no beco de sempre, prostituindo-se, bebendo ou consumindo outra droga qualquer, apesar da idade.
O velho pressente a situação mas não é capaz de dizer nada. Não é capaz. Que coisa é essa que o impede de dizer seja o que for ao mesmo tempo que questiona: «Para que quer Cláudia a liberdade se não sabe ou não pode ser livre».

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

História de um encontro (1)

(Uma história real,  um velho e uma adolescente que saem de casa, um filme a que assisti, há muitos anos, julgo que na televisão espanhola, de que não sei precisar nem o título, e que conto de memória).


 Um velho de olhar triste vagueava sem sentido pela cidade. Era noite e um frio intenso invadia-lhe o corpo e a alma. Contudo, era Verão. Cansado, senta-se num banco de uma, quase deserta, estação de comboios.
Cabeça baixa, segura contra o corpo um embrulho que guarda como se fosse a última coisa que lhe resta. O velho está só, sofre, num silêncio, que magoa quem o observa. Disfarça a custo as lágrimas que teimosamente lhe caem no rosto. De olhos semi-cerrados parece passar em revista toda a sua vida, todo o seu sofrimento.
De repente, de dentro dos arbustos do pequeno jardim contíguo à estação, sai uma jovem mulher, quase criança, fugindo de uns polícias. Grita, abraçando-se ao velho:
- Avô, avô, que bom encontrar-te.
- Este é o meu avô - diz, dirigindo-se a um dos polícias.
Ele não entende. Não podia entender, mas sente que aquela criança precisa de ajuda. Entra no jogo e corresponde ao abraço e ao cumprimento da “neta”. Abraçados permanecem unidos por alguns instantes, enquanto os polícias, embora desconfiados, se vão afastando na direcção contrária à estação.

sábado, 29 de julho de 2017

O velho escravo deseja a morte

Só tens preço, se tens força, se dás lucro, nas plantações, nos engenhos...; embora não possas pôr um pé fora do carreiro e das ordens do patrão, tens comida; mas se já não aguentas trabalhar, arrastas-te, como podes, com doenças e misérias sempre em maior número.

Tudo é indigno, desmedidamente repugnante; há o cá e o lá, o abismo de dois mundos, onde só um tem direitos, dita as leis, decide da vida de tantos seres humanos; o abismo entre o ser e o não ser, entre a existência e a sobrevivência mais absolutas, acentua-se.

O homem velho entra na cabana, abraça a mulher e chora, chora convulsivamente, chora por tudo e por todos, sente-se gente. O amor de alguém é a única coisa que parece restar-lhe. O amor de alguém, sentimento profundo, às vezes, decisivo, por isso, se vive, se sobrevive, se aguenta.

Mas há sempre um limite, resta o silêncio, um imenso silêncio; o velho escravo deseja a morte.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

O velho e a jovem (4)

- Ninguém me entende, sabem apenas criticar-me. 
- Eu, já não sirvo para nada, a minha vontade já não conta. Sinto-me humilhado e nada é pior do que isso.
Enquanto ela rejeita a família, no caso dele foi a família que o rejeitou. Não é  mesma coisa. O abandono dos velhos e a rebeldia dos adolescentes juntam duas criaturas na noite, de uma qualquer cidade, mas não chega a ser um encontro, cada um seguirá o seu caminho.  

quarta-feira, 1 de julho de 2015

O velho e a jovem (3)

Também ela se comoveu, pela primeira vez, fala com ternura na voz, com um misto de surpresa e dó. Afinal, ele parecia sofrer tanto ou mais do que ela.
- Eu sou a Cláudia, queres vir passear comigo? Anda, levo-te para uma casa já fora da cidade onde vive uma amiga minha e onde às vezes costumo ficar. Anda, vem, vem ... 
Arrastado por ela, o velho deixa-se conduzir para fora da estação, sem perguntas mas observando e pensando sempre.
Pela primeira vez, o velho fala:
- Chamo-me João - fez de novo silêncio - Tu saíste, eu fui posto fora de casa.
- Mas eu não quero viver na rua - grita ela.
- Eu também não quero viver num lar - diz  ele.
Cláudia, ora corria, ora parava, ora dizia coisas sem sentido, ora ria e chorava ao mesmo tempo. A confusão de alguém que sente raiva e culpa por uma liberdade que quer, e julga ter conseguido, mas que não lhe serve para nada, antes, a maltrata e prejudica.
Cláudia parece não ser capaz de cuidar de si, hoje, como em muitas outras noites, terminará no beco de sempre, prostituindo-se e consumindo haxixe. O velho pressente a situação mas não é capaz de dizer nada. Não é capaz. Que coisa é essa que o impede de dizer seja o que for, ao mesmo tempo que se questiona: "para que quer Cláudia a liberdade se não é capaz ou não pode ser livre"? 
- Eu sei que se pegar no telefone e disser onde estou, voltarei, ainda hoje, para casa -  diz a jovem.
Sabe isso, mas sabe também que de novo voltará a fugir sem saber de quê ou de quem. Ele, ao contrário, sabe que não vai pegar no telefone, nem voltar para casa. Ninguém o espera.
.

terça-feira, 30 de junho de 2015

O velho e a jovem (2)

Por fim o velho fala:
- Vivia há muito com o meu filho - cala-se, fixa o chão... - e também há muito deixei de sentir a sua ajuda, de sentir o cuidado de alguém. Hoje deixei também de ter espaço, deixei de ter espaço ... - repetia o velho de aspecto cada vez mais ausente.
Tinham-lhe desfeito a cama, feito as malas e ocupado o quarto. Iria viver para um lar de idosos, onde fora inscrito contra a sua própria vontade.
Era demais. Insuportável. Pegou num pequeno embrulho que há muito guardava numa gaveta da cómoda e saiu. Não deixou nada escrito, não se despediu de ninguém, simplesmente saiu de casa, da casa que era dele.
Olhando aquela adolescente, que podia ser sua neta, pensava: "Que sociedade é esta, em que não há lugar para os velhos e em que as crianças fogem de casa?. Que vida familiar é esta que exclui os velhos e não tem tempo para ajudar os filhos a crescer? Que mundo é este em que todos estamos sozinhos, apesar das multidões e do excesso de comunicação"?
O velho não foi capaz de conter as suas emoções e revelar os seus sentimentos. Sem querer começou a chorar.
- Estás a chorar? - diz-lhe a jovem, olhando-o e tocando-lhe no rosto.
Também ela se comoveu, pela primeira vez, fala com ternura na voz, com um misto de surpresa e dó, afinal ele parecia sofrer tanto ou mais do que ela.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O velho e a jovem (1)

(a propósito de um filme ou documentário, já não recordo bem)
Um velho vagueia  pela cidade. É noite e um frio intenso invade-lhe o corpo e a alma. Cansado, senta-se num banco da quase deserta estação de comboios. 
Cabeça baixa, segura contra o corpo um embrulho que guarda como se fosse a última coisa que lhe resta. O velho está só. Sofre num silêncio que magoa quem o observa, disfarçando a custo as lágrimas que teimosamente lhe caem no rosto. De olhos semi-cerrados parece passar em revista toda a sua vida, todo o seu sofrimento.
De repente, de dentro dos arbustos do pequeno jardim contíguo à estação, sai uma jovem mulher, quase criança, fugindo de uns polícias.
Grita, abraçando-se ao velho:
- Avô, avô, que bom encontrar-te. Este é o meu avô - diz, dirigindo-se a um dos polícias.
Ele não entende. Não podia entender, mas sente que aquela criança precisa ajuda. Entra no jogo e corresponde ao abraço e ao cumprimento da “neta”. Abraçados permanecem unidos por alguns instantes, enquanto os polícias, embora desconfiados, se vão afastando na direcção contrária à estação.
- Tenho treze e é a 4ª vez que fujo de casa. Desta vez não volto, não volto mais - repetia como que convencendo-se a si própria de algo que não estava segura viesse a acontecer -mas também não quero ficar na rua - continuava - leva-me para tua casa, preciso de alguém que goste de mim.
- A rua é perigosa - diz o velho, meio a perguntar, meio a afirmar, remetendo-se a um silêncio perturbador. Também ele estava na rua, também ele precisava de casa e de alguém que gostasse dele.
- Fala, diz alguma coisa, vais viajar? Aonde vais? Sabes porque é que a “bófia” me queria apanhar? Porque não perguntas nada?
O velho aturdido pensava «não vou para parte nenhuma ou talvez vá até ao fim de mim mesmo». Nada é mais inevitável que o fim e ele pressentia-o.
- Caraças, não percebo, não dizes nada? Não falas? Olha, já jantaste? Queres jantar?
Duas razões, dois discursos, provavelmente diferentes sentimentos, mas duas vidas cruzadas na mesma situação: uma jovem ainda menina e um adulto já velho vagueando pela cidade, sem casa e, aparentemente, sem família e sem saída.