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quinta-feira, 24 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (6) - A Vera

Naquele ano, a Vera ia ser minha aluna. Tinha prometido a mim própria que iria fazer tudo o que fosse possível por ela. Mas, fazer tudo, talvez não fosse muito. Tentaria, disso tinha a certeza. Comecei a dar-lhe toda a atenção, a pedir-lhe ajuda para pequenas coisas, e a Vera começou a dizer algumas palavras: os livros, o quadro, a pasta…, até que, pouco a pouco, começou a dizer frases completas: - é para ir buscar os livros da professora? É para apagar o quadro? É para procurar dentro da pasta? ... E assim se foi integrando, mas sempre muito dependente de mim, como se eu lhe desse uma segurança que não tinha em mais lado nenhum. Mesmo nos intervalos queria sempre ficar na sala. Muitas vezes, eu saia por causa dela, mas continuava a segurar-me a mão, vejo isso ainda agora quando olho fotografias de dias de festa tiradas nesses tempos de escola.
A Vera estava presa a mim, e eu a ela. Esteve comigo dois anos, por fim falava de tudo, dos irmãos, do pai, da mãe, da casa, do irmão que ia nascer…, parecia outra, já não era a menina assustada e triste, mas dependia demasiado de mim, da minha atenção, mas eu também dependia dela. Estranha relação... A mim magoou-me ter de lhe dizer adeus. Não sei o que se passou a seguir, gosto de pensar que se tornou um menina mais autónoma e mais feliz. Ajudaste-me tanto, Vera! Sabes, continuas a fazer-me falta. 


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Crianças e jovens que eu conheci (5) - O Rui morreu

Leva a irmã pela mão a caminho da escola e fala-me como se me conhecesse muito bem. Disfarço, entro na conversa, intrigadíssima: quem seria aquele jovem que eu não reconheço. Teria sido meu aluno? Era impossível, com certeza que não. Se tivesse sido, reconhecê-lo-ia.
- Tenho saudades desta escola, agora, lá em baixo é tudo diferente.
- Estás em que ano?
- No 6º ano, mas este ano não sei se poderei passar, por causa do meu problema de saúde, há dois meses que não vou à escola. Mas vou ficar bom e recuperar. É assim, tenho que ficar bem, já estou quase bem, mas foi difícil, muito difícil … . 
- Sim, vais ficar bom – digo-lhe, enquanto lhe fixo de novo o rosto. Já sei quem é: é o Rui. Agora, percebo porque não o reconheci, tem um problema de saúde grave, a quimioterapia, a medicação….
Aquele menino, agora com um corpo de adolescente, marcado pela doença, falava-me como um adulto. Como te ia reconhecer, Rui! Mas, és tu, já não tenho dúvidas.
E a conversa continuou até à escola. Nas semanas seguintes, encontro-o várias vezes. O que mais me impressionava era a força de vontade, os projectos, os sonhos, a vida, o futuro: “vou fazer, tenho de fazer, vou ajudar o meu pai, a minha mãe, agora, estou em casa, cuido da minha irmã, lavo a loiça à minha mãe, estou melhor, estou melhor, mas foi difícil, muito difícil, quando estiver bom, vou ficar bom …”.
Um dia deixou de aparecer, dizem-me que foi hospitalizado de novo. Piorou. Não tenho coragem de perguntar mais nada a ninguém. Não demorou muito a chegar a trágica notícia: - O Rui morreu.
Não suportei. Por que morrem os meninos? Por que se morre aos doze anos, quando tudo o que se quer é viver? Por que se morre quando se têm tantos projectos e tantos sonhos?
…………………………………………………(Arredores de Lisboa, 1991)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (4) - O menino árabe

- Um dólar, um dólar, um euro, um euro …, madame, madame, señora, señora! - Eram meninos de sete, oito, nove anos que traziam pequenos objectos que tinham feito com ramos de palmeira entrelaçados: cestinhas, flores, pássaros, e não sei que mais.
Dão os objectos (na realidade, pretendem vender) a uma senhora, a outra e a outra, até ficarem sem nenhum. Quando eu quero comprar, um dos meninos, muito rapidamente, começa a tecer alguma coisa, mas, como já não havia tempo, entrega-ma, tal qual, e diz-me: - É um pájaro, é um pájaro (é um pássaro, é um pássaro)! 
- Querido menino, como é um pássaro!
- Não vê já a cabeça? Não está terminado, mas é um pássaro. A senhora se quiser vê um pássaro – diz-me num espanhol imperfeito, mas que entendi perfeitamente.

- É um pássaro, sim! Como não é um pássaro? Tens razão, já o vejo. 
A porta do autocarro fecha-se e o menino acena-me contente, por ter conseguido a moeda. Fico emocionada e penso na história do Principezinho, será que alguma vez este menino ouviu falar do principezinho e da ovelha dentro da caixa com buracos: “a ovelha que tu queres, está lá dentro”. 
Igual. O pássaro que eu quero, está aqui, neste projecto de pássaro. É só imaginar: grande, pequeno, de poucas ou muitas cores, depende do que eu desejar. Apetece-me dizer-te: - Não voltes a fazer pássaros completos, faz pássaros para os outros imaginarem, para os outros sonharem. Sim, que imaginar também é ver.
(Agosto, 2002, no palmeiral de Marraquexe)

sábado, 19 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (3) - a menina adotada

Passou-se, num dia de Janeiro, numa terra africana, numa casa, onde passava uns dias. Não compreendi, não compreendo, como se pode dar uma filha. Para mim, foi e é incompreensível, mesmo quando parece ser inevitável e, naquele caso, não parecia.
Não esquecerei nunca os olhos e o choro da menina. Um choro contínuo e convulsivo, como se pressentisse, como se tivesse consciência de tudo, do passado, do presente e do futuro.
- Não venha para aqui, não venha para aqui, que a minha filha não a pode voltar a ver – pede a mãe adotiva, insistentemente, à mãe biológica – juntas, porventura pela última vez, no dia do baptizado da menina, por coincidência, no dia em que foi definitivamente entregue aos pais adoptivos, um casal italiano.
- Está bem, não vou – diz, em lágrimas, a mãe verdadeira (desculpem se utilizo este adjectivo, naquele momento, foi assim que senti)
 – Sei que se ela me visse deixava de chorar – insistia.


quinta-feira, 17 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (2)

No dia do passeio escolar, chegaste com um fatinho tão bonito, só te faltava a gravata, parecia que ias para uma festa. E ias mesmo. João, foi tão importante para ti a ida ao Jardim Zoológico, e como te portaste bem! Claro que precisaste que a professora estivesse muito atenta, mas eu também estive atenta aos outros meninos. Viste tudo, participaste, partilhaste o lanche, e que lanche! O teu irmão, de vez em quando, olhava para ti, a vigiar-te, com a preocupação de irmão.
No final, estávamos todos felizes, e tu mais que ninguém. Portaste muito bem, João! Eu tinha tanta vontade que tu fosses como todos os outros meninos! Brincasses, aprendesses, saísses, não pensei se era ou não complicado levar-te ao passeio, queria levar-te e pronto, mostrar-te que podias fazer tudo os que outros faziam, e podias.
O João mudou completamente, nesse ano lectivo. Apesar dos seus problemas de linguagem e das suas dificuldades, começou a aprender, a integrar-se, a ter amigos, a brincar com os outros. No final do ano, sabia ler e escrever. Pela primeira vez, depois de vários anos na escola, tinha aproveitamento.
O que será feito de ti, João? Sabes, para mim continuas a ser muito importante. Recordo como eras traquina, como me punhas a cabeça em água, mas também como me emocionavas cada vez que me olhavas e dizias: - Professora aqui, professora olha, professora ajuda, professora desculpa, professora, professora….
Como não ia ajudar! Como não ia desculpar! Até te encontrar, não achava possível uma ligação tão forte a menino meu aluno.                                                                    ( Em 1984, numa escola do concelho da Azambuja 

Crianças e jovens que conheci (1)

São excertos de textos sobre crianças e jovens, com nomes fictícios, a quem negaram, em algum ponto do seu curto caminho a dignidade que mereciam ou a quem o destino pregou uma partida. 
O que faço é procurar escutar a voz interior destes meninos que, em muitos casos, ou em todos, mesmo, permanece intacta. Negamos-lhes as oportunidades, matamos-lhes os sonhos, mas a pessoa está, permanece. Sai  de entre a multidão, de entre os ruídos e aparece para nos convocar, para nos desinstalar. Não podemos dizer que não a vemos que não a ouvimos. Que respondo? Que respondemos

sábado, 12 de abril de 2014

Uma criança soldado, num sítio qualquer (e há vários)

Ninguém lhe explicou para onde ia. Disseram-lhe que precisavam dele, mas não lhe explicaram porquê nem para quê.
Deixou a sua vida em aberto, suspensa, ou, se calhar, fechada para sempre. Saiu de noite, sem se despedir da mãe, levado à força para um destino desconhecido e incerto de que sentia alguma curiosidade, mas sobretudo arrepios de medo. Foram muitos os que subiram no velho camião conduzido por três homens soldados.
- Tu vais ser um soldado, defender a pátria.
Disso, não percebe nada. Sabe que hoje está vivo e que amanhã poderá ser morto. Pensa que não se despediu da mãe que andava na lavra. Que terá ela pensado? Irá arrumar-lhe as poucas coisas? Esperará por ele? O que lhe dirá quando voltar?
- Vais matar o inimigo, o bandido armado - continuava o oficial.
“E, então, ele não era bandido armado” – pensava o miúdo cada vez mais encostado à grade do camião que se arrastava demoradamente sempre em grandes solavancos, como se a viagem fosse já prenûncio de uma  grande tragédia.



                       

terça-feira, 8 de abril de 2014

Contra o racismo um poema de encantar

Foi há pouco tempo o dia da literatura infantil, uma área na qual dsenvolvi, durante muitos anos, trabalho, sobretudo, na formação de professores. Deixo um poema, muito bonito:

A cor que se tem

Quando for crescida
Hei-de inventar
Um perfume de encantar.

Quem o cheirar há-de ficar
Com a cor da pele
Que mais gostar.

Branco ou amarelo
Se preferir
Preto ou vermelho
É só decidir.

Para alegrar
até vou pensar
Outras cores acrescentar.

Cor de rosa
Verde ou lilás
São cores bonitas
E tanto faz.

E assim,
Há-de chegar
O dia de acreditar
Que o valor de alguém
Não se pode avaliar
Pela cor que se tem

E então,
Tudo estará bem.

                                                  (Maria Cândida Mendonça, in A cor que se tem, Plátano Editora, 1986)

Os beduínos, um povo sem cidadania

Não sei como hei-de dizer: se Beduínos de Israel, da Palestina ou do deserto da Judeia, sem mais. Como não quiseram servir no exército israelita, quando se formou o estado judaico, nunca tiveram a cidadania israelita, mas também não têm o apoio devido da autoridade palestiniana. Abandonados a si próprios, vivem sem direitos, sem direito à terra que sempre foi sua e sem direito ao modo de vida ancestral, a criação de rebanhos de cabras.
Os colonatos israelitas são feitos nas zonas de nascente, deixam sem água os acampamentos beduínos (24 acampamentos, 450 famílias, 4000 pessoas, segundo dados da ONU, referidos na revista Além-Mar de Abril) e sem qualquer subsistência possível. Têm, há 65 anos, o estatuto de refugiados, com direito a uma ajuda da ONU, de três em três meses – farinha, latas de azeite, açúcar, lentilhas…. Sobrevivem, absolutamente encurralados, como se nenhuma outra solução fosse possível e tem de ser.




quarta-feira, 2 de abril de 2014

O aviador, o filme

O que surpreende no filme, até ao ponto de nos perturbar, é como uma pessoa tão inteligente, capaz dos maiores raciocínios lógicos e matemáticos, carrega uma fobia que lhe transtorna a vida, ao ponto de um desequilíbrio mental.
Ter medo de germes, perscrutá-los em todo o lado, não será algo que um ser inteligente pode racionalizar? Pelos vistos não. Sabemos tão pouco de nós próprios, a mente humana está na infância do conhecimento. Para onde caminhamos? E o futuro, como de resta acaba o filme, haverá um futuro mais capaz de lidar com tantas dualidades? Talvez, não. Para este homem, Howard Hughes, que morre em 1976,  o futuro foi a deteriorização progressiva da sua situação clínica.