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terça-feira, 30 de junho de 2015

O velho e a jovem (2)

Por fim o velho fala:
- Vivia há muito com o meu filho - cala-se, fixa o chão... - e também há muito deixei de sentir a sua ajuda, de sentir o cuidado de alguém. Hoje deixei também de ter espaço, deixei de ter espaço ... - repetia o velho de aspecto cada vez mais ausente.
Tinham-lhe desfeito a cama, feito as malas e ocupado o quarto. Iria viver para um lar de idosos, onde fora inscrito contra a sua própria vontade.
Era demais. Insuportável. Pegou num pequeno embrulho que há muito guardava numa gaveta da cómoda e saiu. Não deixou nada escrito, não se despediu de ninguém, simplesmente saiu de casa, da casa que era dele.
Olhando aquela adolescente, que podia ser sua neta, pensava: "Que sociedade é esta, em que não há lugar para os velhos e em que as crianças fogem de casa?. Que vida familiar é esta que exclui os velhos e não tem tempo para ajudar os filhos a crescer? Que mundo é este em que todos estamos sozinhos, apesar das multidões e do excesso de comunicação"?
O velho não foi capaz de conter as suas emoções e revelar os seus sentimentos. Sem querer começou a chorar.
- Estás a chorar? - diz-lhe a jovem, olhando-o e tocando-lhe no rosto.
Também ela se comoveu, pela primeira vez, fala com ternura na voz, com um misto de surpresa e dó, afinal ele parecia sofrer tanto ou mais do que ela.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O velho e a jovem (1)

(a propósito de um filme ou documentário, já não recordo bem)
Um velho vagueia  pela cidade. É noite e um frio intenso invade-lhe o corpo e a alma. Cansado, senta-se num banco da quase deserta estação de comboios. 
Cabeça baixa, segura contra o corpo um embrulho que guarda como se fosse a última coisa que lhe resta. O velho está só. Sofre num silêncio que magoa quem o observa, disfarçando a custo as lágrimas que teimosamente lhe caem no rosto. De olhos semi-cerrados parece passar em revista toda a sua vida, todo o seu sofrimento.
De repente, de dentro dos arbustos do pequeno jardim contíguo à estação, sai uma jovem mulher, quase criança, fugindo de uns polícias.
Grita, abraçando-se ao velho:
- Avô, avô, que bom encontrar-te. Este é o meu avô - diz, dirigindo-se a um dos polícias.
Ele não entende. Não podia entender, mas sente que aquela criança precisa ajuda. Entra no jogo e corresponde ao abraço e ao cumprimento da “neta”. Abraçados permanecem unidos por alguns instantes, enquanto os polícias, embora desconfiados, se vão afastando na direcção contrária à estação.
- Tenho treze e é a 4ª vez que fujo de casa. Desta vez não volto, não volto mais - repetia como que convencendo-se a si própria de algo que não estava segura viesse a acontecer -mas também não quero ficar na rua - continuava - leva-me para tua casa, preciso de alguém que goste de mim.
- A rua é perigosa - diz o velho, meio a perguntar, meio a afirmar, remetendo-se a um silêncio perturbador. Também ele estava na rua, também ele precisava de casa e de alguém que gostasse dele.
- Fala, diz alguma coisa, vais viajar? Aonde vais? Sabes porque é que a “bófia” me queria apanhar? Porque não perguntas nada?
O velho aturdido pensava «não vou para parte nenhuma ou talvez vá até ao fim de mim mesmo». Nada é mais inevitável que o fim e ele pressentia-o.
- Caraças, não percebo, não dizes nada? Não falas? Olha, já jantaste? Queres jantar?
Duas razões, dois discursos, provavelmente diferentes sentimentos, mas duas vidas cruzadas na mesma situação: uma jovem ainda menina e um adulto já velho vagueando pela cidade, sem casa e, aparentemente, sem família e sem saída.

sábado, 27 de junho de 2015

A cabana do Pai Tomás, o livro

Pai Tomás era um homem invulgar. Escravo e negro percebeu desde cedo que a sua luta era, antes de mais, interior. Lutar para encontrar respostas para uma vida mais justa, sem raiva nem violência. Não usava armas, não dizia palavrões, não se revoltava de forma violenta, antes, levava consigo um compromisso de vida: ser amigo de todos, chegar a comover os mais poderosos apenas com o exemplo do seu trabalho e da sua vida.
Quando o dono da fazenda de algodão, em que trabalhava, era querido e respeitado por todos, o teve de vender, partiu de coração doído, mas sem chorar, sem se lastimar, sem deixar de pensar que a grandeza dos homens está naquilo que eles de facto são e não naquilo que os poderosos deste mundo fazem deles.
O patrão - um homem bom - tentou vendê-lo a alguém que o merecesse, mas não foi possível. No mercado de escravos, em que os homens são mercadoria, vale, como em todo o comércio, a lei da concorrência e ganha a partida quem dá mais. Vendido a um comerciante de escravos sem escrúpulos, foi embarcado num barco que o levaria a uma plantação distante e desconhecida.
“Voltaria a ver a família, a mulher e os filhos? Voltaria a sentir os cheiros e as paisagens em que nascera?” - pensava, retirado a um canto do barco, lendo a Bíblia - aparentemente, o único bem material que possuía, uma vez que não era dono nem do seu corpo, nem da sua vida.
Mas, era dono do seu pensamento e até dos seus sentimentos - procurava entender a coisas e amava as pessoas. Entender porque é que há escravos e senhores? Porque é que a liberdade dos escravos tem de ser comprada se eles nada têm ? Suprema ironia e desumanidade. 
(o livro de Harriet Beecher Stowe, foi publicado em 1852)





sexta-feira, 26 de junho de 2015

Discurso final de Charles Chaplin no filme "O grande Ditador” - Parte 2

- "Soldados não vos entregueis a esses homens brutos que vos desprezam e vos tratam como escravos; homens que governam as vossas vidas, decidem os vossos actos e os vossos pensamentos; domesticam-vos, tratam-vos como animais e utilizam-vos como carne para canhão. Não vos coloqueis nas mãos desses homens anti naturais, desses homens máquinas, com coração de máquinas.
Vós não sois máquinas! Não sois animais! Sois homens! Levais o amor e a humanidade nos vossos corações. Não odieis. Só os que não são amados odeiam. Os que não são amados e os anormais... soldados não combatais pela escravatura, combatei pela liberdade.
No capítulo 17 do Evangelho segundo São Lucas lê-se: “O reino de Deus está no próprio homem”, não num único homem, não num único grupo de homens, mas em todos os homens e vós, vós, sois o povo, tendes o poder para criar máquinas, o poder para criar a felicidade. Vós, o povo, tendes o poder para criar a vida livre e esplêndida ... para fazer dessa vida uma radiante aventura.
Então, em nome da democracia, utilizemos esse poder... Unamos-nos todos, lutemos por um mundo novo, um mundo limpo que ofereça a todos a possibilidade de trabalhar, que dê à juventude um futuro e  que proteja os velhos da miséria".

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Discurso final de Charles Chaplin no filme “O grande Ditador” - Parte 1

Para quem não viu o filme, uma nota sobre a situação: uma imensidão de soldados, todos bem alinhados e atentos, espera o discurso do grande ditador (Hitler, evidentemente). Em vez disso aparece Charlot (que devido à semelhança física fora confundido) que faz este brilhante discurso sobre os direitos humanos, falando de respeito, de liberdade, de progresso, de justiça e de democracia.


 "Realmente sinto muito mas não aspiro a ser imperador. Isso não significa nada para mim. Não pretendo governar nem conquistar nada de nada. Ao contrário, gostaria de ajudar, se possível, cristãos e judeus, negros e brancos; todos temos o desejo de nos ajudarmos, mutuamente. A gente civilizada é assim: queremos viver da nossa sorte comum e não da nossa desgraça comum. Não queremos desprezarmos-nos nem odiarmos-nos, uns aos outros. Neste mundo, há sítio para todos. A terra é boa,  rica e pode garantir a subsistência de todos.
O caminho da vida podia ser livre e magnífico, mas perdemos esse caminho. A voracidade envenenou a alma dos homens, rodeou o mundo num círculo de ódio e fez-nos entrar na miséria e no sangue.
Melhorámos a velocidade, mas somos escravos dela, a mecanização que traz consigo a abundância afastou-nos do desejo. A ciência tornou-nos cínicos e a inteligência duros e brutais, pensamos em excesso e não sentimos o bastante.
Temos mais necessidade de espírito humanitário que de mecanização. Necessitamos mais de amabilidade e simpatia do que de inteligência. Sem estas qualidades, a vida só pode ser violenta e tudo está perdido.
A aviação e a rádio aproximaram-nos uns dos outros, mas a própria natureza destes inventos requeria a bondade do homem e reclamava a fraternidade universal para a união de todos. Neste momento, a minha voz chega a milhares de seres oprimidos espalhados pelo mundo. Aos que podem compreender-me lhes digo:
- Não desespereis, a desgraça que caiu sobre nós não é mais que o resultado do apetite feroz da amargura de uns homens que temem o caminho do progresso humano. O ódio dos homens passará, os ditadores morrerão e o poder que usurparam ao povo voltará ao povo".

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quarta-feira, 24 de junho de 2015

A casa tropical, o documentário

São casas construídas, no pós II Guerra Mundial, em cidades africanas, como Brazaville (Congo) ou Niamey (Níger)  que nos colocam uma importante interrogação sobre o tempo. Casas que, passados mais de cinquenta anos, já muito degradadas e desfiguradas, foram compradas, desmontadas, peça a peça, metidas em contentores e levadas para o 1º mundo para serem transformadas em obra de arte. São agora exibidas em Paris, Roma, Nova Yorque. 
Discutia-se: - são ou não património do Congo e do Níger? Devem voltar a estes países? Têm estes países alguma noção de património, de passado histórico? Alguma noção da importância de preservação do passado? Ao limite, têm noção de passado?
São os próprios a responder. A antiga proprietária da casa de Brazaville acha que ainda bem que a sua "casa" (que um francês lhe comprou e pagou bem, tirando-a da miséria) seja agora obra de arte que todos admiram, está certa de que se tivesse ficado teria sido completamente destruída. 
Um artista local diz: - os africanos não preservam o passado, não precisam do passado.
Não compreendo. Compreendo que, se alguém vive na mais extrema pobreza, não se interesse por guardar as pedras ou os ferros do edifício histórico, se precisa delas para fazer um muro; compreendo que utilize a casa/o monumento para viver, guardar o gado ou o que seja; compreendo que, se alguém  vive obcecado com a comida desse dia, não tenha como preocupação preservar marcas da história. Mas estas pessoas hão-de ter alguma noção de passado, porque ninguém escolhe ter ou não memória, temos memória. Temos passado, mesmo que não saibamos que vozes o habitam, que imagens, que antepassados ou deuses eternos o povoam. Não sabemos, mas eles sabem. É o tempo de cada um, subjectivamente vivido e pensado de que não podemos objectivamente falar. Um tempo que existe sem precisar de qualquer marca visível.

sábado, 20 de junho de 2015

Convites para a festa dos direitos humanos

Há vários meses que trabalhavam afincadamente para que tudo estivesse pronto e em ordem, no dia da festa. Estão na recta final. Hoje, é preciso entregar os convites.
A Ana, tal como todos os colegas, tinha vários para entregar. Bateu à porta do vizinho, um menino indiano, que vivia na casa ao lado, mas com quem nunca tinha falado, para além do "bom dia" e "boa tarde", que dizemos por educação e cortesia às pessoas que conhecemos ou com quem nos cruzamos. Desta vez, não podia deixar de o convidar, estava convencida que ele iria querer participar nesta grande festa dos direitos humanos.

Bateu também à porta da amiga com quem costuma jogar futebol, aos fins-de-semana. Tinham decidido, e iriam cumprir, um importante lema: “Ninguém fica à porta, ninguém fica de fora”. Não importa a cor da pele, se é rico ou pobre, branco, preto ou amarelo, se tem uma religião ou uma cultura diferentes. Todos vão poder participar.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Árvores eternas...

Muitas vezes, ao atravessarmos certas regiões de África, invade-nos um sentimento de contingência, de precariedade, como se as areias, os ventos, as brumas, o calor, o sol e a chuva se combinassem para eternizar o presente e a necessidade de um contínuo recomeço.

Só as árvores parecem eternas, lá, onde estão, cumprindo um destino. São eternos os coqueiros que guardam, de muito alto, a baía de Inhambane, à saída do barco, em Maxixe. São eternos os cajueiros, de enormes copas, quase tocando o chão, que vislumbramos pelos vidros do autocarro, pelas estradas de Gaza; são eternas as altas e frondosas mangueiras, carregadas de mangas, que  passam de verdes a amarelas e vão caindo de maduras, no recreio do Instituto São José, em Inhambane ; são eternas as acácias vermelhas que sobem por cima dos telhados no pátio dos salesianos, em Maputo. São eternos os olhares que olham as árvores. Há uma eternidade em cada instante, por mais breve que seja.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Redistribuição ou reconhecimento?

A discussão contemporânea sobre a justiça, pelo menos no campo da reflexão filosófica e política, situa-se muito entre os que entendem que a justiça distributiva, na linha da moral kantiana, responde a todas as questões da distribuição justa dos bens sociais, por se tratar de  princípios universais; e os que entendem que isso é impossível sem o reconhecimento dos indivíduos concretos, das suas identidades, práticas culturais e  objectivos específicos, impossíveis de universalizar. 
Tratar estas perspectivas como antagónicas, leva a criar pólos que se opõem em vez de  criar possibilidades de alguma conciliação. O ponto é saber como pode isso ser feito. a questão é: como conciliá-las em vez de as colocar em oposição?

terça-feira, 9 de junho de 2015

Globalização, a difícil realidade

Aparentemente, nunca foi tão fácil conhecer e interagir com outros povos e outras pessoas e, portanto, estabelecer contactos e relações interculturais. Seria assim, se todos os saberes estivessem vagueando nas redes de informação virtual e se todos os que querem e procuram conhecer outras culturas, tivessem acesso a um computador e dominassem as técnicas informáticas.

Ora, não é isso que acontece. Há milhões de seres humanos excluídos deste processo de globalização, sem possibilidade de qualquer interacção a nível global. E mesmo para aqueles que têm acesso e dominam a técnica, não é seguro que o excesso de informação se traduza num maior conhecimento cultural, não, apenas, porque é necessário ter adquirido qualidades intelectuais que lhes permitam aprender – capacidade de contextualizar a informação, de interpretá-la, de torná-la sua… – mas, ainda, porque escapa à voragem informática a complexidade e a riqueza de todos os processos humanos, nas suas dinâmicas de sobrevivência, de resistência e de desenvolvimento que o viver local dos diferentes grupos supõe e envolve. 

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Desenvolvimento sustentável

Um desenvolvimento que dê prioridade à educação, que aposte na valorização pessoal e social das pessoas através da educação e formação. Um desenvolvimento que ponha o local e suas potencialidades à frente de outros interesses. 
Coisas simples, de bom senso, poderiam ser feitas, por exemplo, se em determinada região do mundo a base da alimentação é o milho ou o arroz, porque se hão-de plantar apenas café ou bio-combustíveis, produtos sujeitos a especulações bolsistas que, não raro, afectam quem produz e quem vende. Melhor, produtos que assegurem a subsistência.
Também, um desenvolvimento científico e técnico equilibrado. Se não há conhecimentos para operar determinada máquina, porque se investem milhões nela, se sabemos que irá ficar parada, à mínima avaria. A ideia deve ser, sempre, a de um desenvolvimento capaz de criar sustentabilidade, em vez de acentuar ruturas, com capacidade de lançar novos desafios, ancorados em objectivos já alcançados, para que o progresso não se transforme numa mera ilusão.