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sábado, 27 de abril de 2013

O albergue

Todos eram sem-abrigo. Viveram, anos a fio, na rua, alguns mais de vinte anos. Todos têm os corpos e as almas marcados pelo álcool, pela droga, pela doença, pela solidão…
“Fui parar à rua – diz-me um senhor com quarenta e poucos anos – porque não consegui gostar de ninguém, nem dos meus pais, nem dos meus irmãos, nem da minha mulher… Quando comecei a namorá-la, houve um clique em mim, pensei que era possível aquele amor. Mas não foi. Nada me preenchia, procurava sem saber o quê, até que um dia sai de casa, mudei de cidade e desci ao inferno das ruas. Só havia álcool, cocaína, abandono, dias inteiros, em grupo, traficando e roubando para consumir. Anestesiado, não me dava conta de que já não era gente. Até que um dia, há quatro anos, fui parar ao hospital, quase morto e, depois, já em recuperação, fui trazido para aqui. Um dia qualquer, hei-de comprar um bilhete de autocarro e voltar a casa. Será que ainda estão lá aqueles a quem não fui capaz de querer?



quarta-feira, 24 de abril de 2013

Terrorismo, em Boston

Podem fazer-se muitas análises, mas a que a mim mais me impacta é a que tem a ver com o extremismo islâmico: matar por Alá. O absurdo é total.
O que aconteceu, na cabeça destes jovens, mais ou menos inseridos na sociedade americana, com perspectivas de futuro, para, dum momento para o outro, se fazerem jihadistas, combatentes por um radicalismo que considera que não é apenas o ocidente que ameaça as suas crenças (de que nem sequer eram grandes praticantes) mas até os moderados do islão?
Alguma coisa de muito perturbador nos escapa, para que não sejamos capazes de uma mínima compreensão sobre isto. Talvez, algo da ordem da identidade mais profunda de cada ser humano: somos quem?


terça-feira, 16 de abril de 2013

Imigrantes,

Levantar muros, fechar portas e janelas não é a melhor resposta, nem será nunca a solução para os problemas das sociedades actuais, cada vez mais diferenciadas, diversas e multiculturais, com prementes questões de direitos humanos – discriminações, violência, insegurança, imigração clandestina, exclusão social...

O número crescente de excluídos não é apenas formado pelos africanos e outros imigrantes que chegam às cidades do mundo rico à procura de condições mínimas de sobrevivência, são, também, os que, embora, vivendo nele, estão à margem do sistema económico e social. As questões da distribuição da riqueza, as injustiças sociais, são a causa das maiores violações de direitos humanos no mundo.  

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Morre-se, assim


Deixou na mesa um maço de notas e disse à mãe da criança que eram para a levar ao médico, fazendo todos os gestos possíveis para que ela entendesse (talvez fosse surda-muda). Estendido numa esteira, ardendo em febre, olhos fechados, imóvel, com uma fragilidade que dói e assusta, pois pressente-se o pior, o menino ali está.
Se fosse num país desenvolvido, teria sido, a tempo e horas, assistido num hospital e um antibiótico ou outro medicamento ter-lhe-ia salvo a vida. Mas, assim, naquele subúrbio insalubre, daquela imensa cidade asiática, o destino seria outro. Foi tempo de mais até se arranjar o dinheiro necessário para o tratar.  
Se estivesse a escrever ficção, este menino não morreria, haveria tempo para a mãe o levar ao hospital, para comprar medicamentos, e o fim seria o de uma criança feliz, a brincar na rua, mas como estou a escrever sobre a realidade, não posso fugir ao fim trágico, o menino morreu.
O tal senhor que tinha deixado o maço das notas, chega para o funeral, há muita gente, a mãe não está só. Cumprem-se os rituais religiosos e culturais, e o menino parte. Mas, talvez nunca parta enquanto viverem, alguns dos que ali estão, pelo menos a mãe. 

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Mulheres sem rosto



Vimos, há dois ou três dias, numa reportagem televisiva, aquando da deslocação do ministro da saúde à Arábia –Saudita, procurando negócios, nomeadamente nesta área, mulheres de bata branca e um enorme véu preto sobre o rosto, ficando apenas a descoberto os olhos. Chocante, para dizer o mínimo. Inaceitável, quando o mundo de hoje é de inter-relações globais.
 Já escrevi tantas vezes sobre este assunto, mas sinto que não podemos continuar sem nada fazer, o argumento religioso e cultural não chega, não estamos mais na Idade Média, em sociedades fechadas, a abertura impõe novos critérios, desde logo o do respeito pela relação com os outros.
Sem rosto, parecem também sem identidade, como é que as vemos, como é que as recordamos? Não há relação, nos moldes em que a entendemos, da solicitude, da reciprocidade, do olhar o rosto. Não queremos impor nada mas parece razoável perguntar: não temos o direito a uma relação face a face, a uma relação  de proximidade que só o rosto, torna possível. Mulheres sem rosto, quem lhes impõe tal destino?



quarta-feira, 3 de abril de 2013

Manifestações, todos estamos nas ruas


Sucedem-se as manifestações, novos, velhos…, diferentes grupos profissionais, reformados e pensionistas. Alguns são manifestantes improváveis, não fazem parte da luta ideológica, sempre presente, fazem- no porque há um tomar de consciência de que é necessário, de que não pode ser de outro modo. Prefeririam ficar em casa, no sofá, mas são impelidos por uma urgência: a de que não podemos continuar assim.
Se deixamos o mundo entregue aos políticos e especialistas de Bruxelas e outros que tais (há muitos por essas instituições supra nacionais) não haverá saída. Fazem brilhantes previsões, que geralmente não acertam, análises contraditórias, soluções de madrugada, que ao comum dos mortais, parecem sempre um confronto de interesses, onde os alemãs nunca perdem e os outros arranjam tristes justificações para mais um corte, um imposto, uma taxa, um resgate…; ou ficaremos condenados a décadas e, se calhar, até, séculos de desmoronamento de direitos e de  invernia social.