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sábado, 1 de agosto de 2015

As senhoras que vendiam molhinhos de hortaliça (2)

 - Não preciso, quero só uma molhada de couves e outra de repolhos.
- E cebolo, e pimentos, e alho francês e beterraba vermelha... não quer – pergunta-me a outra senhora.
- Não preciso – digo-lhe – já comprei.
Mas foi tal a insistência que acabei por lhe comprar uma molhada de alhos franceses
- Um e dois, três euros, dois para mim e um para ela – diz-me a primeira senhora.
Mas, o que me impressionou mais, foi o que se passou a seguir. Enquanto uma queria deitar no lixo tudo o que tinha, e ainda era bastante, a outra insistia:
- Deixamos os sacos à beira do passeio, pode ser que passe alguém com precisão de hortaliça para plantar.
- Não, deitamos fora, é melhor, não fica nada a atravancar.
E assim fez, deitou no contentor os dois sacos que tinha na mão com os molhos de hortaliça que não conseguira vender; enquanto a outra senhora, a quem eu tinha comprado o alho francês, deixou à beira do contentor, encostado ao passeio um saco quase cheio de tudo o que não conseguira vender, ajeitando a abertura de modo a ficarem à mostra os molhinhos de legumes. Não sei porquê,  penso que um destino bom aguardava os legumes que a senhora deixou. Não morreram naquele dia. 


sexta-feira, 31 de julho de 2015

As senhoras que vendiam molhinhos de hortaliça (1)

Ambas pareciam frágeis, pela idade, seguramente, mais de oitenta anos, mas também pelas mazelas bem visíveis, uma delas caminhava já muito curvada.
Aparentemente, não têm idade para vender hortaliças; têm idade para estar em casa e já com algum apoio. Mas não, continuam a semear, a mondar, a regar, a arrancar e a fazer molhinhos de diferentes legumes para vender no mercado. Continuam a fazer (até ao limite das forças) o que sempre fizeram. A fazer o que viram as mães fazer, as vizinhas e todas as mulheres da sua terra fazer, desde crianças, há sessenta ou setenta anos, mesmo que depois de tanto trabalho o lucro seja mínimo ou nem sequer seja nenhum.
Encontrei-as já bem ao final da manhã, quando saia da praça e elas se dirigiam carregadas, cada uma com mais de dois sacos para junto do contentor de resíduos.
- Têm couves para plantar – pergunto-lhes?
Começam a tirar do saco molhadas e molhadas de legumes.
- Uma, duas, três, quatro, cinco, seis..., de couves, repolhos, cebolo..., leve tudo que lhe damos cada molhada a um euro, nem chega a metade do preço.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O velho e a jovem (1)

(a propósito de um filme ou documentário, já não recordo bem)
Um velho vagueia  pela cidade. É noite e um frio intenso invade-lhe o corpo e a alma. Cansado, senta-se num banco da quase deserta estação de comboios. 
Cabeça baixa, segura contra o corpo um embrulho que guarda como se fosse a última coisa que lhe resta. O velho está só. Sofre num silêncio que magoa quem o observa, disfarçando a custo as lágrimas que teimosamente lhe caem no rosto. De olhos semi-cerrados parece passar em revista toda a sua vida, todo o seu sofrimento.
De repente, de dentro dos arbustos do pequeno jardim contíguo à estação, sai uma jovem mulher, quase criança, fugindo de uns polícias.
Grita, abraçando-se ao velho:
- Avô, avô, que bom encontrar-te. Este é o meu avô - diz, dirigindo-se a um dos polícias.
Ele não entende. Não podia entender, mas sente que aquela criança precisa ajuda. Entra no jogo e corresponde ao abraço e ao cumprimento da “neta”. Abraçados permanecem unidos por alguns instantes, enquanto os polícias, embora desconfiados, se vão afastando na direcção contrária à estação.
- Tenho treze e é a 4ª vez que fujo de casa. Desta vez não volto, não volto mais - repetia como que convencendo-se a si própria de algo que não estava segura viesse a acontecer -mas também não quero ficar na rua - continuava - leva-me para tua casa, preciso de alguém que goste de mim.
- A rua é perigosa - diz o velho, meio a perguntar, meio a afirmar, remetendo-se a um silêncio perturbador. Também ele estava na rua, também ele precisava de casa e de alguém que gostasse dele.
- Fala, diz alguma coisa, vais viajar? Aonde vais? Sabes porque é que a “bófia” me queria apanhar? Porque não perguntas nada?
O velho aturdido pensava «não vou para parte nenhuma ou talvez vá até ao fim de mim mesmo». Nada é mais inevitável que o fim e ele pressentia-o.
- Caraças, não percebo, não dizes nada? Não falas? Olha, já jantaste? Queres jantar?
Duas razões, dois discursos, provavelmente diferentes sentimentos, mas duas vidas cruzadas na mesma situação: uma jovem ainda menina e um adulto já velho vagueando pela cidade, sem casa e, aparentemente, sem família e sem saída.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

A casa tropical, o documentário

São casas construídas, no pós II Guerra Mundial, em cidades africanas, como Brazaville (Congo) ou Niamey (Níger)  que nos colocam uma importante interrogação sobre o tempo. Casas que, passados mais de cinquenta anos, já muito degradadas e desfiguradas, foram compradas, desmontadas, peça a peça, metidas em contentores e levadas para o 1º mundo para serem transformadas em obra de arte. São agora exibidas em Paris, Roma, Nova Yorque. 
Discutia-se: - são ou não património do Congo e do Níger? Devem voltar a estes países? Têm estes países alguma noção de património, de passado histórico? Alguma noção da importância de preservação do passado? Ao limite, têm noção de passado?
São os próprios a responder. A antiga proprietária da casa de Brazaville acha que ainda bem que a sua "casa" (que um francês lhe comprou e pagou bem, tirando-a da miséria) seja agora obra de arte que todos admiram, está certa de que se tivesse ficado teria sido completamente destruída. 
Um artista local diz: - os africanos não preservam o passado, não precisam do passado.
Não compreendo. Compreendo que, se alguém vive na mais extrema pobreza, não se interesse por guardar as pedras ou os ferros do edifício histórico, se precisa delas para fazer um muro; compreendo que utilize a casa/o monumento para viver, guardar o gado ou o que seja; compreendo que, se alguém  vive obcecado com a comida desse dia, não tenha como preocupação preservar marcas da história. Mas estas pessoas hão-de ter alguma noção de passado, porque ninguém escolhe ter ou não memória, temos memória. Temos passado, mesmo que não saibamos que vozes o habitam, que imagens, que antepassados ou deuses eternos o povoam. Não sabemos, mas eles sabem. É o tempo de cada um, subjectivamente vivido e pensado de que não podemos objectivamente falar. Um tempo que existe sem precisar de qualquer marca visível.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

As raparigas ciganas

Aconteceu pela Páscoa (há muito tempo). Penso que seriam duas ou três jovens mulheres ciganas, carregadas de filhos, uns ao colo, ainda bebés, e outros, também de curta idade, agarrados às longas saias. Bateram-me à porta a pedir esmola.
- Senhora dê-nos alguma coisinha, nasceu um menino no acampamento, esta noite, e a mãe está muito mal e não temos nada para lhe dar.
- Mas, o que posso dar?
- Podia dar-nos um bocadinho de azeite, um bocadinho de pão, arroz ou batatas, para fazer uma miga ou uma sopa, não temos nada.
- Não sei se tenho, vou ver.
- Pela sua saúde, pelas alminhas que lá tem, dê-nos alguma coisa, o azeite é o que mais precisamos.
Não sei por quê, mas para mim o pedido era verdadeiro, não me passava pela cabeça que estavam a mentir e que aquela era mais uma estratégia de pedir esmola. 
Acreditei. Fui buscar o azeite, como já não era muito, dei-lhes a garrafa. Não tinha pão, dei-lhes algum arroz e algumas batatas. Agradeceram e foram embora.
Fiquei a pensar, o dia todo, naquela rapariga que tinha tido um filho, em condições sub-humanas no acampamento da beira da estrada e no perigo que corria, ela e o seu bebé. Mesmo que, naquele caso, pudesse ter sido uma história, a realidade era essa: nascer à beira da estrada, sem quaisquer condições, sem quaisquer direitos. 

sexta-feira, 13 de março de 2015

A Bondade do Papa


"Por que há crianças a sofrer?" - pergunta a criança filipina numa mensagem que lia ao Papa. Mas, não aguentou. Mesmo com o apoio do jovem que a acompanhava e lhe tocava levemente nas costas, como que a dar força e ânimo para que prosseguisse, continuou soluçando.
A menina chorou e fez chorar. O Papa disse: “ precisamos chorar”, com o sentido de que precisamos de sofrer com os que sofrem. “Nós, todos os instalados na vida precisamos chorar”, continuou o Papa.
Não sei quem é aquela jovem. Sabemos que foi abandonada, que cresceu nas ruas e foi resgatada por uma instituição. O Papa abraçou-a e ela abraçou o Papa, por baixo da cintura, à sua altura, como se não houvesse distâncias. Talvez, a humanidade toda esteja aqui, neste gesto, nesta proximidade, neste encontro.
O que vimos é evangelho, anúncio, boa nova. O Papa surpreende a cada passo, seja em visitas pastorais, encontros diplomáticos, encontros com o clero, telefonemas ou cartas para gente anónima…; surpreende pelo inusitado, pelo novo, pela surpresa. Mas, talvez, cada gesto tenha sempre o mesmo sentido e a mesma fonte: a bondade do Papa.


segunda-feira, 9 de março de 2015

Perder a alma

Nem todos perdem a alma da mesma maneira. Alguns não perdem, porque não a têm. Sem valores, sem sentimentos, agem no limite da  animalidade. 
Fazem tudo, roubam, batem, torturam, matam…, voltam a matar…como se nada fosse, como se nada se passasse, voltando às suas vidas criminosas, sempre da mesma maneira, sem qualquer consciência. Por que chegaram a este ponto? Por que chegaram aqui? Não sabemos. 
Outros ficam loucos, perdem a alma, já não sabem quem são, vivem um  inferno que lhes rouba a  paz e tortura os dias. 

sexta-feira, 6 de março de 2015

Emigrante

No cais há um vai e vem contínuo; uns partem, despedem-se, desejam saúde e sorte por lá, de rosto fechado, às vezes em lágrimas; outros reencontram-se, enchem-se de felicidade, há sorrisos e alegria.
Aquele homem, afastado de todos, sofria. Fingia uma força que não tinha: “trabalho na Alemanha, por lá a vida corre bem, mas o pior é deixar a mulher e os filhos”- diz-me.
Muitos dos que entraram vão à janela acenar aos que ficam, enquanto o comboio se afasta mais e mais. Ele não deixou ninguém no cais, não tem a quem acenar, sente-se exausto, cai no assento, abandona-se, procurando não pensar. Até daqui a um ano, se vier, haverá tempo para milhares de vezes rever na mente todas as pessoas e paisagens que deixa atrás e que agora se recusa a olhar. Recolhe-se a um lugar, onde há uma proximidade e uma presença que só ele conhece.
Já não está ali, apesar de estar. Regressou à sua casa, à mesa com os filhos, às conversas entrecortadas, inacabadas, aos gestos e aos mimos dos que ama. Parte, sem partir. Quase nunca estamos onde vivemos, pisamos as ruas, subimos escadas…, estamos onde sentimos um existir que nos preenche por dentro.
Passará tempo, até voltar a abrir os olhos e a perguntar ao vizinho do lado: “também vai para a Alemanha?”
- Não, vou para França.
França, Alemanha, tanto dá. Tantos destinos, tantas paragens, tanto descer e subir. Era assim nos anos setenta do século passado. É assim (ainda hoje é).


quinta-feira, 5 de março de 2015

A jovem moçambicana

Ali ficou, em soluços, assustada, perdida, à espera que a tia chegasse. A vulnerabilidade da jovem era tão evidente, apesar dos seus catorze anos! Chorava convulsivamente, agarrada a mim, que desci do autocarro para a ajudar, como que a implorar: “não me deixem aqui, sozinha”. Mas, como fazer? Tínhamos, eu a amiga, de continuar viagem até Maputo. Quando não viu a tia, como estava combinado, e não reconheceu o sítio, entrou em pânico.
O problema era se havia outra paragem e se desencontravam. Teria ficado no sítio certo? A minha preocupação diminuiu, ao pensar que, numa localidade tão pequena, a tia iria procurá-la e facilmente a encontraria. Talvez se tivesse atrasado, apenas. Digo-lhe: “telefona à tua tia, a dizer que já chegaste”. “Não tenho saldo – é comum toda a gente andar de telemóvel na mão, mas poucos terem saldo) - responde-me.
“Não te preocupes, vamos já telefonar à tua tia, saber se foi atraso ou o que se passou”. Assim foi, a amiga telefonou à tia e ficámos com a certeza de que as duas se encontrariam dentro de instantes.  
O que se passaria com esta jovem, tão impreparada para a vida, tão assustada? Afinal, não conhecia Macia, embora, sempre dissesse: “sou de Macia, a caminho de Maputo”. Mas essa não podia ser a razão para tamanho descontrolo. Que medos e dúvidas a invadiam? Não sei, mas não podem ser pequenos.



sábado, 27 de dezembro de 2014

Sobrevivência, dez anos depois do Tsunami


Dez anos depois do Tsunami, quando a tragédia volta aos meios de comunicação, ouvimos histórias de sobrevivência, verdadeiramente incríveis. O sentido da sobrevivência, algo da ordem do instinto, ultrapassa a racionalidade e coloca-nos num limite que não imaginamos possível. Talvez, nada leve tão longe a capacidade de superação, de resistência e de sofrimento, como a luta por continuar a respirar, a alimentar-se, a permanecer à superfície…, mesmo que o amanhã seja de perdas, lutos e nódoas negras.
É certo que, passado tempo, já sem a dor inicial, a dominar os dias, ganha-se força para enfrentar o caminho, sair de casa, cumprimentar os vizinhos, ir trabalhar, entrar no supermercado, passear no jardim…, como se nada fosse, como se não existissem marcas. Ainda que, em muitos casos, uma dor silenciosa, de aceitação, longe da rutura e do abismo dos primeiros instantes, continue lá no mais profundo de cada um.


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Procura

Voltou ao lugar, onde já tinha ido, muitas vezes, sempre, na esperança de a encontrar. Entrou no bar da estrada e olhou fixamente os camionistas debruçados sobre o balcão, fumando e bebendo. Procurava um, em especial:
- O senhor é de…, o senhor é o…, o senhor é de…, o senhor chama-se…
- Não, não sou de… não me chamo…; não sou, não me chamo…
A resposta não difere. A filha pode estar morta, vítima de sida ou de outra qualquer doença, mas isso não a impedirá de voltar de novo, enquanto não souber o que lhe aconteceu
- A sua filha saiu daqui, foi para sul – diz-lhe o dono do bar.
- Para sul, para onde?
- Não sei dizer. Parece que ninguém sabe.
Não sabe bem onde fica o sul, será muito longe, não tem como ir, mas voltará a este e a outros bares da beira de estrada, até saber o que se passou. Não desiste dela. Como poderia fazê-lo? Não pode.


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Lá longe, na minha infância

Queria falar, neste Natal, dos que, longe de casa, são imigrantes, refugiados, deslocados..., mas regressei à minha infância. 
Anos sessenta. Era criança e não percebia muitas coisas. Não percebia, porque homens, pela calada da noite, em segredo, partiam, a"salto", para a França, atravessando montes e vales, levados por "passadores". Agora sei, fugiam da miséria em que viviam. Iam à procura de dinheiro para alimentar as suas famílias, mandar os filhos à escola, fazer uma casa. Era assim. Nunca teria ido estudar, se o meu pai não tivesse ido para a França. Homens que deixavam as suas casas, os seus filhos, as suas mulheres e partiam, quantos sacrifícios, para chegar à fronteira francesa e quem sabe a Paris, e aí arranjar um alojamento e um trabalho, precários que fossem. 
Era criança e não percebia muitas coisas. Não percebia por que jovens, de dezoito, dezanove, anos e alguns até menos, também, fugiam a "salto", para França e a Alemanha. Ficavam desertores, não podiam regressar, se voltassem ao seu país seriam presos. Agora sei, fugiam à guerra, à guerra colonial, uma guerra de que talvez pouco ou nada soubessem, senão que lhes podia roubar a vida.



terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Indochina, o filme

Queria escrever sobre a força de alguns sentimentos.Vêm-me à ideia o filme “Indochina”, que vi há muito tempo, e a imagem de um jovem que viveu, até à idade adulta, construindo uma imagem poderosa e ao mesmo tempo romântica e feliz de uma mãe guerreira, activista política, na luta pela independência do Vietname.
Num certo dia, sabendo que a mãe estaria, em França, numa tal recepção, decide ir. Cruzam-se, mas não se falam. Ela não sabe quem é ele, deixou-o pequenino com a avó, na longínqua Indochina.Mas, talvez ninguém tenha estado mais presente na sua vida que o filho ausente, que não viu crescer, ir à escola, jogar, ter sonhos de adolescente, nada. 
São dois estranhos, apesar de existirem laços familiares tão próximos e sentimentos tão diários e tão profundos. Talvez o jovem  tivesse ido aquela recepção na esperança de que um clique os lançasse nos braços um do outro, como se os anos não tivessem passado, o tempo se tivesse suspendido e a vida já vivida se tornasse comum. 
Nem o tempo se suspendeu, nem os olhares se cruzaram, ao ponto de se fundirem. Dois estranhos, passando lado a lado, incapazes de se abraçarem, de se comunicarem. Ele podia tê-lo feito, reconheceu-a, sabia quem ela era. Por que razão não o fez, por que permaneceu mudo e imobilizado, no cimo da escada? Por que não foi capaz de lhe falar? 
Talvez, volte a andar quilómetros e quilómetros para a ver de perto, aplaudir o seu discurso, chorar uma lágrima e, quem sabe, até, poder dizer-lhe: - mãe!
E ela  pare o discurso e indiferente a tudo corra para ele gritando: - filho!
Agora, só existe o presente. Tudo é caminho, tudo é futuro…  Celebremos o encontro, aquele encontro. 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A senhora x

Onde iria parar? não é primeira vez nem será a última, como dominar aquela ansiedade, aquele quase desequilíbrio emocional, que cada vez mais a põe num estado incapaz de se relacionar com alguém. Podia fugir de todos, fechar a porta, a televisão, tomar um comprido e dormir, mas, mesmo assim,: como fugir de si própria?


terça-feira, 9 de setembro de 2014

O jovem argentino que vinha do festival da Idanha

- Já é Lisboa?
- Não, é Santarém
- Falta muito para Lisboa?
- Mais ou menos 100km. Nunca veio a Lisboa?
- Não, não conheço.
Assim começou um diálogo muito interessante, até à estação do Oriente, com o jovem sentado a meu lado que vinha do festival da Idanha, que entendi ser de correntes alternativas de vida.
É claro nele um estilo de vida alternativo, mas há uma delicadeza nos gestos e um sorriso e uma gargalhada que criam empatia e proximidade.
Contesta a sociedade contemporânea, as suas instituições e os seus sistemas económicos e políticos; fala-me de liberdade, de paz, de justiça, de amor, da comunhão com a natureza…
Interesso-me. Quantas vezes já ouvi e li sobre utopias? Muitas.
Mas esta é uma utopia que tem um desprendimento e uma distância encantatórias;  não parece existir urgência, é a crença de que a mudança é inevitável, pela tomada de consciência de que não podemos seguir como estamos.
Fala-me da namorada espanhola que ainda não conseguiu fazer a opção e como compreende isso.  
Tento ver se há uma racionalidade ou apenas uma crença inconsequente. Tem um discurso estruturado, convicto, é culto, tem um curso superior, é professor, trabalhou num banco…, ou seja, não é um marginalizado, mesmo que tenha escolhido como tantos outros viver numa margem que acredita possa ser um caminho futuro. Fiquei curiosa, estou tão instalada na minha vidinha que não deixo que me surpreendam com facilidade, e este jovem conseguiu.
Um abraço para ele, lá onde estiver organizando ou participando em mais um festival.

                                                     


sábado, 30 de agosto de 2014

A morte chegou

Já aqui escrevi sobre ele. Sobre a sua degradação física, o seu olhar perdido e doente.
Acabaram de o encontrar morto em casa, sozinho, sem ninguém.
Mas, afinal, a sua solidão era igual à de muitos outros que morrem sós, nos lares, nos hospitais ou em suas casas. Tinha filhos, dizem-me que um deles tinha estado cá há pouco tempo.
Mas, a sua tormenta não acaba hoje, mesmo parecendo que acabou. Dadas as circunstâncias, vieram as autoridades e foi levado  para a medicina legal, na Covilhã, para ser autopsiado.
É assim. Quem tomará conta dele, do enterro?.
Certamente, virão os filhos, se não a misericórdia ou outra instituição fará o seu melhor.
Sinto a sua morte e recordo a sua vida de jovem adolescente que foi para França, ainda, muito  novo, para fugir à guerra de África e à miséria em que aqui se vivia. Por lá, viveu dias felizes e maus, é certo que não se pode dizer as pedras no seu caminho tenham sido poucas. 


sábado, 3 de maio de 2014

A menina egípcia que vendia marcadores de papiro (8)

Não sei bem, mas eram, seguramente, mais de uma dezena de crianças que vendiam marcadores e outros pequenos objectos, junto a uma fábrica de transformação de papiro, onde os turistas param para observar o processo de produção e fazer compras.
Era uma menina muito bonita! Não tinha mais de seis ou sete anos, no máximo. Muito pequenina, muito esperta, vestidinha à árabe a vender aos turistas marcadores de papiro. Contava, na perfeição, em inglês, francês, espanhol, e repetia, sem parar, os números até doze, número que correspondia ao “molhinho” de marcadores que vendia por um dólar.
Toda a gente, literalmente toda, enquanto eu estive a observar, lhe comprou os marcadores. Ela era o centro de todas as atenções, impossível não a fixar, pela graça, pela desenvoltura, pelo modo como uma criança, tão pequena e tão linda, contava marcadores de papiro.
A mãe vigiava-a, por perto, mas mesmo assim não evitava que os “maiorzinhos” não achassem piada à freguesia que conseguia atrair e lhe dessem encontrões, a obrigassem a sair da frente e a sentassem a um canto. Por um lado, percebo, ela tirava-lhes todo o negócio, conseguia todas as atenções. Mas continuava. Contava, repetidamente, sem parar, não desistia, e isso foi o mais impressionante, não desistiu nunca, a determinada altura chorava convulsivamente, lágrimas rosto abaixo, mas continuava: one two, three, …e mais um molhinho de marcadores, e outro, e outro e mais outro … .
- Minha menina, não podes brilhar tanto! Tens de deixar os outros também vender. Vá lá, tem de ser assim! Não te dão encontrões e socos por não gostarem de ti, apenas porque não suportam não vender nada aos turistas que param junto a fábrica de transformação do papiro. Vai descansar um pouco, cuidar da tua voz, já rouca de tanto apregoar marcadores de papiro, deixa os outros meninos também venderem um bocadinho. Não quero ver-te chorar mais!

                                                                                     Agosto, 2005, arredores do Cairo 

domingo, 26 de janeiro de 2014

Um não regresso a casa

Ia sem saber bem o que procurar, talvez a casa, a casa dos pais. Estaria ainda de pé, passados quase quarenta anos, estaria a acácia vermelha florida e os canteiros no pátio...? E as pessoas, reencontrará alguém conhecido?
Pensava nisto, enquanto evitava um remoinho interior, que se transformou num quase mal estar. Sabia bem que nunca se regressa ao mesmo lugar, duas vezes, nunca se regressa ao ambiente que se deixa atrás, e neste caso por muitas razões. Talvez, tudo seja estranho, talvez ninguém o reconheça e talvez não reconheça ninguém. Estrangeiro na sua terra que agora talvez já não possa chamar sua. 
Desce do carro, afasta-se da estrada principal, entra na cidade, dirige-se ao sitio onde viveu anos a fio com os pais, os irmãos, os tios e os primos, reconhece as casas, a sua casa, está habitada, quem a habitará, ainda haverá lá dentro algo que possa reconhecer?
Anda mais uns passos abaixo, na direcção das ultimas casas da rua, quando vê alguém familiar, muito familiar, que caminha na sua direcção, alguém que reconhece imediatamente, permanecem frente a frente, olham-se, abraçam-se:
- “Es o Zé”
Ouve de volta: 
-“És o João”
Emocionam-se. 
-Não chores! Éramos tão amigos...
- Não, somos amigos. A tua casa foi dada a gente de fora, a pessoas que vieram do norte. Não são daqui. Queres vê-la, talvez possas?
- Não sei se quero, vim sem um plano, à espera do que encontrasse, e encontrei-te, já valeu a pena.
Continuam a conversa, que os leva longe, muito longe, a um tempo, ainda não perdido, porque muitos o recordam, mas necessariamente distante, a um tempo de muitos matizes e lados, de muitos enganos e tropeções. 
Não teve coragem de bater à sua porta, de falar com o novo dono, de dizer-lhe sem mágoa: esta casa faz parte de mim, faz parte da minha família...
Regressa a Maputo,  aliviado por não ter desfeito o encanto que a sua memória guarda de um tempo feliz e também  por ter sentido o valor da amizade. 

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Quantos rostos tem a pobreza

Tinha vestido o casaco novo, as luvas e o cachecol da sua melhor amiga. Sentia-se outra:
 - Estou bonita? – Perguntou-me.
- Estás muito bonita.
- Eu não posso ter roupa nova, porque a minha mãe é pobre. Falava da situação familiar e da pobreza de forma desconcertante, como se isso normal,
- Tu tens roupa muito bonita, andas sempre muito vaidosa – digo-lhe.
 Saiu para intervalo, mas esse dia não brincaria com os colegas, não jogaria à bola, não jogaria à macaca… Esse dia iria subir e descer a rampa de acesso ao recreio e passear de um ao outro lados do parque como  se fosse uma modelo. Queria que a vissem, precisava disso, era uma maneira de passear a sua estima, de sentir-se elogiada…
Recordei uma história que na minha infância ouvi por várias vezes contar a uma vizinha: não tinha roupa, apenas um fato para a “cote”, um fato para os dias de semana, muitas vezes remendado, e um fato para o domingo.
Quando ia à casa da senhora, onde a mãe trabalhava, observava a roupa da filha da senhora e não resistia a vestir os vestidos da “menina”, que tinha a sua idade, e, às escondidas da mãe, punha-se à janela a ver se alguém passava e a via e também para ver a sua imagem reflectida nos vidros.
Ambas, com o espaço de quase um século, experimentavam sentimentos semelhantes: o desejo de ser bonitas, de ser vistas e  reconhecidas, que alguém as  valorizasse.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O arrumador de carros (empatia ou o que seja)

- Que horas são – pergunta-me o jovem (muito menos de vinte anos) que acaba de me ajudar a arrumar o carro?
- São seis horas. Por que será que há tanto movimento, tanta gente, aqui?
- Porque há jogo no Benfica, está tudo cheio, teve muita sorte em arranjar aqui um lugar. Podia dar-me este dinheiro todo – referia-se à nota de cinco euros que lhe tinha dado para retirar um euro e devolver-me o resto.
- Sabe que, quando não tenho moedas, não paro, mas, olhei para si e confiei – digo-lhe. Pensei: ‑ posso dar-lhe a nota que ele vai dar-me o troco.
- E vou mesmo, senhora. Vou mesmo.
- Afinal, não me enganei. Está a ver como ainda funciona olhar para os olhos das pessoas. Você tem uns olhos muito bonitos!
- Ah é! Não sei, não costumo olhar para a minha cara, nem para a minha, nem para a de ninguém.
- Por que é que é tão difícil olharmos-nos uns aos outros face a face? Por que será tão difícil parar para conversar?
- Dona, ninguém quer conversa, dão-me o dinheiro e não me olham e eu faço o mesmo.
- Importa-se com isso?
- Não, até, prefiro assim. Só me interessa o dinheiro. Só o dinheiro me interessa.
- Conversar não?
Afasta-se, repentinamente.
‑ Adeus, dona. Vai sair dali um carro, tenho que guardar o lugar.
– Adeus, jovem, um bom dia para si.
 Hoje, não pudemos conversar mais, mas quando nos voltarmos a encontrar falaremos de novo, tenho a certeza. Vamos ter tempo.