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sábado, 3 de maio de 2014

A menina egípcia que vendia marcadores de papiro (8)

Não sei bem, mas eram, seguramente, mais de uma dezena de crianças que vendiam marcadores e outros pequenos objectos, junto a uma fábrica de transformação de papiro, onde os turistas param para observar o processo de produção e fazer compras.
Era uma menina muito bonita! Não tinha mais de seis ou sete anos, no máximo. Muito pequenina, muito esperta, vestidinha à árabe a vender aos turistas marcadores de papiro. Contava, na perfeição, em inglês, francês, espanhol, e repetia, sem parar, os números até doze, número que correspondia ao “molhinho” de marcadores que vendia por um dólar.
Toda a gente, literalmente toda, enquanto eu estive a observar, lhe comprou os marcadores. Ela era o centro de todas as atenções, impossível não a fixar, pela graça, pela desenvoltura, pelo modo como uma criança, tão pequena e tão linda, contava marcadores de papiro.
A mãe vigiava-a, por perto, mas mesmo assim não evitava que os “maiorzinhos” não achassem piada à freguesia que conseguia atrair e lhe dessem encontrões, a obrigassem a sair da frente e a sentassem a um canto. Por um lado, percebo, ela tirava-lhes todo o negócio, conseguia todas as atenções. Mas continuava. Contava, repetidamente, sem parar, não desistia, e isso foi o mais impressionante, não desistiu nunca, a determinada altura chorava convulsivamente, lágrimas rosto abaixo, mas continuava: one two, three, …e mais um molhinho de marcadores, e outro, e outro e mais outro … .
- Minha menina, não podes brilhar tanto! Tens de deixar os outros também vender. Vá lá, tem de ser assim! Não te dão encontrões e socos por não gostarem de ti, apenas porque não suportam não vender nada aos turistas que param junto a fábrica de transformação do papiro. Vai descansar um pouco, cuidar da tua voz, já rouca de tanto apregoar marcadores de papiro, deixa os outros meninos também venderem um bocadinho. Não quero ver-te chorar mais!

                                                                                     Agosto, 2005, arredores do Cairo 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Onde estão os meus amigos?

Quando se perde tudo, mesmo tudo, e não há esperança, só resta a raiva. Contida ou expressa, uma raiva presente que tortura os dias, desfaz os sonhos e pior, ainda, desumaniza, embrutece e torna insensível a mais doce das criaturas.
Agredir e ser agredido, é o dia a dia destas crianças que sobrevivem em condições inimagináveis, abaixo de tudo o que seria o mínimo de dignidade possível capaz de lhes assegurar um pouco de estima por si mesmas. Funciona apenas o instinto da sobrevivência.
O João é um destes meninos. Perdeu tudo, lá longe onde vivia. Fugiu da guerra mas nunca encontrou paz. Suporta tudo: anda roto,  sujo, faminto, ferido, doente..., mas não suporta perder amigos, como se os sentimentos fossem para ele o mais fundamental. E são. Repete vezes sem conta: não aguento ver morrer os meus amigos. Está furioso, com raiva no olhar, na voz e nos gestos diz-nos:
- Quando saí do buraco, não vi o Américo, nem o Toné, nem a Micas. Onde estão os meus amigos? Corri todas as ruas, procurei-os todo o dia e por todo o lado. Onde estão?”. Eu não os perdi, ontem foram comigo para o buraco, alguém mos roubou. Mais uma vez me roubaram. Mataram o pai, a mãe e os irmãos, sozinho e assustado fugi.  

(uma criança africana, nos subúrbios de uma qualquer capital, dessas onde não se respeita a vida e se mata por nada)