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quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Lá longe, a França


Nenhuma memória é mais real, mais marcada e mais continuada na minha vida do que a da emigração. Naqueles idos anos sessenta, a França era uma realidade diária, estava nas ruas, nas conversas e nas vidas de todos os habitantes. Se víamos duas ou mais pessoas a conversar na rua era quase certo que falavam de familiares a viver em França.
Não havia família que não tivesse alguém naquele país. Em muitos casos, todos estavam lá, tinham ficado, apenas, os avós, já de idade. O mesmo acontecia com a minha família. De algum modo, eu, a minha mãe, os meus irmãos, os meus avós, tal como o resto das pessoas daquela terra, também estávamos vivendo nos arredores de Paris.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

“Já estive na América” - diz-me a senhora


Cheguei muito cedo à estação do porto do Pico. Queria apanhar o primeiro barco do dia. A sala de espera estava deserta; passado algum tempo, chegou uma senhora com mais de meia cesta de ovos, empilhados uns em cima dos outros, como antigamente se fazia.
- Vai ao médico – pergunta-me?
Percebi que eu podia ser dali. Na verdade, nesta ilha, a pronuncia não é acentuada.
- Não, estou a passear, vou passar o dia ao Faial.
-Ah! Não é daqui! Achei estranho, não a ter visto antes.
- Sou da Guarda, não longe da serra da Estrela, a segunda montanha mais alta de Portugal, a seguir ao Pico.
- Nunca fui ao continente. Mas já estive na América, tenho dois filhos na América.
Não refere a cidade, nem o Estado, diz na América, como se se tratasse duma coisa única, duma identidade. E tem razão; quando um açoriano diz «América», fica-se a saber tudo. Sabemos do que fala.
Quase em cima da hora do barco, aparecem os que vão trabalhar, os que vão de facto ao médico, ao tribunal ou a outra instituição pública que só há na  cidade da Horta.
Entrámos, pouca gente. Só para mim, aquela travessia parecia uma novidade. Deixei-me levar, olhando a ilha que ficava para trás, o mar revolto, as enormes ondas e, pouco tempo depois, o porto da Horta. A cidade parece um alpendre, ao longo daquela baía, em declive, roçando o mar. À saída  a senhora, com quem tinha falado no Pico, quase me esperou para me desejar um bom dia. Agradeci.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Mortes no Mediterrâneo, a imigração ilegal

Mais mortes no Mediterrâneo, setecentos, ou talvez mais; fala-se agora também de duzentas mulheres e de cinquenta crianças. O drama continua e continuará. Já era hora de se perceber que a resposta tem de ser outra. Todos falam: o Papa, os presidentes, os ministros dos negócios estrangeiros, outros responsáveis políticos..., mas uma resposta integrada, que considere os interesses de segurança da Europa e também a o desenvolvimento e a pacificação das zonas de onde vêm, parece tardar. Vigiar, salvar, acolher por uns dias e fazer retornar, não é solução. Voltarão a tentar sair das suas vidas de miséria e de guerra, uma e outra vez.






sexta-feira, 6 de março de 2015

Emigrante

No cais há um vai e vem contínuo; uns partem, despedem-se, desejam saúde e sorte por lá, de rosto fechado, às vezes em lágrimas; outros reencontram-se, enchem-se de felicidade, há sorrisos e alegria.
Aquele homem, afastado de todos, sofria. Fingia uma força que não tinha: “trabalho na Alemanha, por lá a vida corre bem, mas o pior é deixar a mulher e os filhos”- diz-me.
Muitos dos que entraram vão à janela acenar aos que ficam, enquanto o comboio se afasta mais e mais. Ele não deixou ninguém no cais, não tem a quem acenar, sente-se exausto, cai no assento, abandona-se, procurando não pensar. Até daqui a um ano, se vier, haverá tempo para milhares de vezes rever na mente todas as pessoas e paisagens que deixa atrás e que agora se recusa a olhar. Recolhe-se a um lugar, onde há uma proximidade e uma presença que só ele conhece.
Já não está ali, apesar de estar. Regressou à sua casa, à mesa com os filhos, às conversas entrecortadas, inacabadas, aos gestos e aos mimos dos que ama. Parte, sem partir. Quase nunca estamos onde vivemos, pisamos as ruas, subimos escadas…, estamos onde sentimos um existir que nos preenche por dentro.
Passará tempo, até voltar a abrir os olhos e a perguntar ao vizinho do lado: “também vai para a Alemanha?”
- Não, vou para França.
França, Alemanha, tanto dá. Tantos destinos, tantas paragens, tanto descer e subir. Era assim nos anos setenta do século passado. É assim (ainda hoje é).


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Lá longe, na minha infância

Queria falar, neste Natal, dos que, longe de casa, são imigrantes, refugiados, deslocados..., mas regressei à minha infância. 
Anos sessenta. Era criança e não percebia muitas coisas. Não percebia, porque homens, pela calada da noite, em segredo, partiam, a"salto", para a França, atravessando montes e vales, levados por "passadores". Agora sei, fugiam da miséria em que viviam. Iam à procura de dinheiro para alimentar as suas famílias, mandar os filhos à escola, fazer uma casa. Era assim. Nunca teria ido estudar, se o meu pai não tivesse ido para a França. Homens que deixavam as suas casas, os seus filhos, as suas mulheres e partiam, quantos sacrifícios, para chegar à fronteira francesa e quem sabe a Paris, e aí arranjar um alojamento e um trabalho, precários que fossem. 
Era criança e não percebia muitas coisas. Não percebia por que jovens, de dezoito, dezanove, anos e alguns até menos, também, fugiam a "salto", para França e a Alemanha. Ficavam desertores, não podiam regressar, se voltassem ao seu país seriam presos. Agora sei, fugiam à guerra, à guerra colonial, uma guerra de que talvez pouco ou nada soubessem, senão que lhes podia roubar a vida.



quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Tragédia humana, Lampedusa



Não sei se a imagem era verdadeira ou cínica (julgo que só pode ser verdadeira) – o ar pungido de Durão Barroso e do Primeiro ministro italiano, frente ao mar de caixões, com as crianças à frente.
Mais de trezentos mortos, muitos ainda por resgatar, uma tragédia sem contornos que se estende por muitos lados, às famílias, às comunidades, de onde estes emigrantes eram oriundos...
Ficamos parados, a pensar: se quem pode fazer alguma coisa, não faz, que podemos nós? Pelo menos, juntarmos-nos a quem gritou: é uma vergonha! Tenham vergonha!
Agora, a Comissão Europeia disponibilizará 30 milhões de euros para a ajuda aos refugiados, em Itália, mas, a questão não é essa, não é acolhê-los e devolvê-los aos países de origem, não é o regresso a nada, que resolve o problema. Tem de existir outra resposta para a emigração clandestina.  




quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Sonho ou pesadelo, emigração clandestina

Vou colocar-te uma situação: imagina que estavas fechado numa casa, sem alimentos nem meios de sobrevivência. O que farias? Com certeza, que esperavas algum tempo - uns dias, no máximo - por socorro, mas se não conseguisses farias tudo para sair de lá. Partirias as janelas, arrombarias as portas, o que fosse possível e mais fácil, para saíres dessa situação e sobreviveres. Se te perguntassem: - porque fizeste isso? Dirias: - era a única solução.
É o mesmo que se passa com milhões de africanos. “Fechados” num continente, onde nem todos têm alimentos, onde a miséria, a fome, a violência e às vezes a guerra, matam mesmo. Nestas condições, sair daí é a única solução para sobreviver. Por isso, não é de admirar que deixem a sua casa, as suas aldeias, o seu país, pondo em risco a própria vida. São populações em desespero, não têm nada a perder, arriscam tudo para chegar à Europa. O mais fácil (a tal janela) é atravessar o estreito de Gibraltar, de noite, para fugirem à vigilância das autoridades espanholas, em barcos de borracha, sobrelotados, com muitas dezenas a mais do que seria possível levar. São jovens, mulheres (algumas grávidas) e crianças que chegam em condições sub-humanas. Clandestinamente, como se não existissem, fazem tudo para não ser vistos, espalham-se, separam-se, confundem-se. Mas nem todos chegam, muitos morrem, mas que importa nem sequer ficam nas estatísticas – pensarão alguns. Claro que importa, e muito. Os países ricos do Norte têm o dever de fazer alguma coisa. Partirão daqui para outras cidades europeias, não sei se ainda com algum sonho. Eu espero que sim, às vezes parece terem desistido de alguma parte de si mesmos, a gente vê isso no olhar. Parecem ausentes, perdidos, como se não olhassem as ruas, como se não vissem as pessoas ou não sentissem o movimento. Estão aonde? Pensam em quê?

quarta-feira, 30 de março de 2011

A pobreza extrema

Em muitas regiões do mundo, as condições de vida agravam-se, a cada dia que passa. Hoje, mesmo, milhões de pessoas irão dormir com fome, sub-nutridas, vulneráveis a doenças e a epidemias que as deixarão marcadas para o resto das suas vidas ou as levarão a uma morte prematura – a SIDA é o caso mais flagrante, com dimensões devastadoras, mas continuam a matar a malária, a tuberculose, a cólera… Nestas condições a emigração clandestina aparece-lhes como a única saída e arriscam tudo para chegar à Europa, que julgam de portas abertas e mesas cheias. Não raro, deparam-se exactamente com o inverso, muitas barreiras e muitas dificuldades. 

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Casas à venda (6)

Algumas das casas novas (agora, menos novas, mas quase nunca usadas) há muito que deixaram de ser abertas. Quem as construiu, quem fez o poço, plantou as árvores, arranjou os canteiros do jardim e a horta, já não está. Os que ficaram já não se sentem daqui, pelo menos não o suficiente para manterem essa ligação muito ténue e frágil que só existia por causa dos pais.Muitos já deixaram e outros deixarão de vir, cada mês de Agosto. Querem, quase com um sentimento de urgência, desfazer-se, a qualquer preço, do que aqui têm, pôr à venda pelo que seja, desfazer todos os laços, colocar um ponto final. Nada os identifica, nada os prende, querem ficar livres de obrigações, de contas certas para pagar de água, luz, impostos….Vender é a opção que vêem como mais vantajosa. Mas, nem sempre têm a noção dos preços, julgam que tudo é muito desvalorizado, não dão o devido valor, vendem às vezes por um preço irrisório. Há mesmo casos, em que é tal o desprendimento que vendem as casas com tudo o que têm dentro, as mobílias, a loiça e até os objectos pessoais. Não deixa de ser estranho. Remexidos os móveis, a casa será de novo habitada, ganhará de novo vida, outra alma, será alegre, triste ou bem-disposta, à imagem do novo morador, mas guardará para sempre nos seus segredos a memória boa de quem, com tanto entusiasmo, carinho, luta e em muitos casos sacrifícios a desejou, planeou, construiu e habitou nem que fosse por curtos períodos de férias. A casa já não é a mesma casa. Foi assim que teve de ser, dizem. Se calhar, sim.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Os desertores (4)

Não percebia por que jovens de dezassete, dezoito anos, alguns até menos, também fugiam a "salto", para França. Ficavam desertores, não podiam regressar, senão seriam presos. Mas que mal teriam feito? Por que tinham de deixar o país, de sair assim de junto das famílias?
Agora sei. Fugiam à guerra, à guerra colonial, de uma guerra de que eu nada sabia e talvez eles e as suas famílias também não, a não ser que lhes podia roubar a vida. Por causa da guerra de África, muitos pais ficaram anos a fio, décadas, sem ver os seus filhos. Só quando acabou a ditadura puderam regressar de novo. Mas alguns, sem apoio familiar, nessa grande Paris, mais ou menos perdidos nas encruzilhadas da vida (sim, porque sempre a má sorte bate à porta de alguém) acabaram por não voltar mais. Aos que chegavam, a pergunta era invariavelmente a mesma: - Viu por lá o meu filho? – Não o vi, mas sei que está bem. Estive com alguém que o viu.
E o coração daquela mãe, ou daquele pai, sossegava um pouco.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A salto para a França (3)

A emigração clandestina não começou hoje, com os milhares de africanos ilegais que tentam chegar à Europa. É velha de muitos anos, como é velha a injustiça a que povos inteiros são condenados a viver. Todos os que testemunharam o que significava ir a salto para a França podem falar desse drama. Mas talvez as crianças o vivessem de um modo diferente, porque muitas vezes, só na manhã seguinte se davam conta que o pai já não ocupava o lugar à mesa. Daí para a frente, teriam de intuir e de viver muitas coisas que nem sequer suspeitavam.
Deixo aqui um relato mais ou menos imaginado vivido por muitas crianças, naquela época.
“Era alta noite, quando o pai foi ao seu quarto dar-lhe um beijo. Era um beijo de despedida, ele partia nessa madrugada a "salto" para a França. A menina nem sequer suspeitava o que era ir "a salto" para França, mas devia ser alguma coisa de mau, de perigoso, pois sempre que a mãe falava disso com a avó, fazia-o muito baixinho, quase em segredo. Desconfiada e a medo, na tarde desse dia, atreveu-se a perguntar:
- O pai vai embora?
- Cala-te, não digas a ninguém. Não digas a ninguém, ouviste bem!
- Mas, o pai vai para a França?
- Não, não vai. Cala-te!
Ela sabia o que estava para acontecer. Como não ia saber, tinha visto a mãe chorar pelos cantos, limpar as lágrimas a correr, quando alguém a via sofrer. Em toda a noite, não pregou olho. Esperava o pai, ainda que tivesse um desejo profundo de que isso não viesse a acontecer. Quando o pai abriu a porta do quarto, fingiu-se dormida, por não conseguir suportar a dor. A porta fechou-se e o mundo desabou. Como iriam viver sem o pai? Por que tinha ele de partir?
Não sabia nada das necessidades da sua família, não imaginava sequer. Tinha oito anos, como podia saber! Agora sabe, sabe que o pai, como tantos outros, fugia da miséria em que viviam. Iam à procura de dinheiro para alimentar as suas famílias, para mandar os filhos à escola, para fazer uma casa. Era assim.
Mas muitos não conseguiam passar as fronteiras. Na manhã seguinte, finalmente, a mãe tenta explicar-lhe porque é que o pai tem de ir embora e o que é ir a salto, e que talvez o pai nem sequer consiga chegar a França, talvez seja apanhado pelos guardas-fiscais ou pelos carabineiros, a polícia espanhola, logo na fronteira e tenham que regressar a casa.

Todos vivíamos nos arredores de Paris (2)

Naquela altura, anos sessenta, a França era uma realidade diária, naquela aldeia da Beira Alta, quase na fronteira com Espanha. Estava ali, nas ruas, nas conversas e nas vidas de todos os habitantes. Se víamos duas ou mais pessoas a conversar na rua era quase certo que falavam de familiares a viver em França. Não havia família que não tivesse alguém naquele país. Em muitos casos, todos estavam lá, tinham ficado, apenas, algumas mães com os filhos e os avós, já de idade. O mesmo acontecia com a minha família. De algum modo, eu, a minha mãe, os meus irmãos, os meus avós, tal como o resto das pessoas daquela terra, também estávamos vivendo nos arredores de Paris.
Quando hoje penso no que era, nessa altura, para mim a França, Paris …, não consigo chegar a qualquer imagem, por mais difusa que seja. Paris era as pessoas que conhecia, que chegavam invariavelmente cada mês de Agosto e que eu julgava viverem lá. Talvez houvesse pouca gente a falar do país, da cidade, a mostrar qualquer fotografia que fosse. Também nunca, na minha imaginação, estiveram os “bidonvilles”, as “cités”; estavam, isso sim, as miniaturas da Torre Eiffel e do General De Gaulle, pequenas lembranças que traziam os “franceses” e que ficavam a enfeitar a chaminé da cozinha ou o móvel da sala. Mais tarde, vim a constatar que até para os emigrantes Paris era uma cidade desconhecida. Viviam nas margens. Atravessavam-na, apenas.

domingo, 29 de novembro de 2009

Emigração, sempre (1)

Nenhuma experiência é mais real, mais continuada e mais presente, na minha infância, na minha adolescência e até na minha vida adulta, do que a da emigração. - "Foram para a França"; - "Estão na França"; "Escreveram da França"; "Vieram da França"; "Casou na França"; "Morreu na França"; … Cresci a ouvir isto. Envelheço a ouvir isto.
Mais de cinquenta anos de emigração, a 1ª geração quase morta, a 2ª a entrar na reforma, a terceira e a quarta gerações cada vez mais integradas no país onde nasceram, cresceram e se tornaram adultos, numa separação permanente de que só os primeiros sentem mágoa. Todos os outros se foram progressivamente afastando, sem nostalgia, duma terra e de um povo dos quais já não guardam grandes recordações. O sentimento de ser emigrante diluiu-se ou não existe neles e, de certo, que não tardará a acabar por completo. E com isso acabarão os meses de Agosto, as festas e as romarias dos emigrantes. Está prestes a fechar-se um ciclo.