Quando
se perde tudo, mesmo tudo, e não há esperança, só resta a raiva. Contida ou
expressa, uma raiva presente que tortura os dias, desfaz os sonhos e pior, ainda, desumaniza, embrutece e torna insensível a mais doce das criaturas.
Agredir
e ser agredido, é o dia a dia destas crianças que sobrevivem em condições
inimagináveis, abaixo de tudo o que seria o mínimo de dignidade possível capaz
de lhes assegurar um pouco de estima por si mesmas. Funciona apenas o instinto
da sobrevivência.
O
João é um destes meninos. Perdeu tudo, lá longe onde vivia. Fugiu da guerra mas
nunca encontrou paz. Suporta tudo: anda roto, sujo, faminto,
ferido, doente..., mas não suporta perder amigos, como se os sentimentos fossem
para ele o mais fundamental. E são. Repete vezes sem conta: não aguento ver morrer
os meus amigos. Está
furioso, com raiva no olhar, na voz e nos gestos diz-nos:
- Quando saí do
buraco, não vi o Américo, nem o Toné, nem a Micas. Onde estão os meus amigos?
Corri todas as ruas, procurei-os todo o dia e por todo o lado. Onde estão?”. Eu não os perdi,
ontem foram comigo para o buraco, alguém mos roubou. Mais uma vez me roubaram.
Mataram o pai, a mãe e os irmãos, sozinho e assustado fugi.
(uma
criança africana, nos subúrbios de uma qualquer capital, dessas onde não se respeita a vida e se mata por nada)