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sexta-feira, 6 de março de 2015

Emigrante

No cais há um vai e vem contínuo; uns partem, despedem-se, desejam saúde e sorte por lá, de rosto fechado, às vezes em lágrimas; outros reencontram-se, enchem-se de felicidade, há sorrisos e alegria.
Aquele homem, afastado de todos, sofria. Fingia uma força que não tinha: “trabalho na Alemanha, por lá a vida corre bem, mas o pior é deixar a mulher e os filhos”- diz-me.
Muitos dos que entraram vão à janela acenar aos que ficam, enquanto o comboio se afasta mais e mais. Ele não deixou ninguém no cais, não tem a quem acenar, sente-se exausto, cai no assento, abandona-se, procurando não pensar. Até daqui a um ano, se vier, haverá tempo para milhares de vezes rever na mente todas as pessoas e paisagens que deixa atrás e que agora se recusa a olhar. Recolhe-se a um lugar, onde há uma proximidade e uma presença que só ele conhece.
Já não está ali, apesar de estar. Regressou à sua casa, à mesa com os filhos, às conversas entrecortadas, inacabadas, aos gestos e aos mimos dos que ama. Parte, sem partir. Quase nunca estamos onde vivemos, pisamos as ruas, subimos escadas…, estamos onde sentimos um existir que nos preenche por dentro.
Passará tempo, até voltar a abrir os olhos e a perguntar ao vizinho do lado: “também vai para a Alemanha?”
- Não, vou para França.
França, Alemanha, tanto dá. Tantos destinos, tantas paragens, tanto descer e subir. Era assim nos anos setenta do século passado. É assim (ainda hoje é).


quinta-feira, 5 de março de 2015

A jovem moçambicana

Ali ficou, em soluços, assustada, perdida, à espera que a tia chegasse. A vulnerabilidade da jovem era tão evidente, apesar dos seus catorze anos! Chorava convulsivamente, agarrada a mim, que desci do autocarro para a ajudar, como que a implorar: “não me deixem aqui, sozinha”. Mas, como fazer? Tínhamos, eu a amiga, de continuar viagem até Maputo. Quando não viu a tia, como estava combinado, e não reconheceu o sítio, entrou em pânico.
O problema era se havia outra paragem e se desencontravam. Teria ficado no sítio certo? A minha preocupação diminuiu, ao pensar que, numa localidade tão pequena, a tia iria procurá-la e facilmente a encontraria. Talvez se tivesse atrasado, apenas. Digo-lhe: “telefona à tua tia, a dizer que já chegaste”. “Não tenho saldo – é comum toda a gente andar de telemóvel na mão, mas poucos terem saldo) - responde-me.
“Não te preocupes, vamos já telefonar à tua tia, saber se foi atraso ou o que se passou”. Assim foi, a amiga telefonou à tia e ficámos com a certeza de que as duas se encontrariam dentro de instantes.  
O que se passaria com esta jovem, tão impreparada para a vida, tão assustada? Afinal, não conhecia Macia, embora, sempre dissesse: “sou de Macia, a caminho de Maputo”. Mas essa não podia ser a razão para tamanho descontrolo. Que medos e dúvidas a invadiam? Não sei, mas não podem ser pequenos.



sábado, 27 de dezembro de 2014

Sobrevivência, dez anos depois do Tsunami


Dez anos depois do Tsunami, quando a tragédia volta aos meios de comunicação, ouvimos histórias de sobrevivência, verdadeiramente incríveis. O sentido da sobrevivência, algo da ordem do instinto, ultrapassa a racionalidade e coloca-nos num limite que não imaginamos possível. Talvez, nada leve tão longe a capacidade de superação, de resistência e de sofrimento, como a luta por continuar a respirar, a alimentar-se, a permanecer à superfície…, mesmo que o amanhã seja de perdas, lutos e nódoas negras.
É certo que, passado tempo, já sem a dor inicial, a dominar os dias, ganha-se força para enfrentar o caminho, sair de casa, cumprimentar os vizinhos, ir trabalhar, entrar no supermercado, passear no jardim…, como se nada fosse, como se não existissem marcas. Ainda que, em muitos casos, uma dor silenciosa, de aceitação, longe da rutura e do abismo dos primeiros instantes, continue lá no mais profundo de cada um.


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Procura

Voltou ao lugar, onde já tinha ido, muitas vezes, sempre, na esperança de a encontrar. Entrou no bar da estrada e olhou fixamente os camionistas debruçados sobre o balcão, fumando e bebendo. Procurava um, em especial:
- O senhor é de…, o senhor é o…, o senhor é de…, o senhor chama-se…
- Não, não sou de… não me chamo…; não sou, não me chamo…
A resposta não difere. A filha pode estar morta, vítima de sida ou de outra qualquer doença, mas isso não a impedirá de voltar de novo, enquanto não souber o que lhe aconteceu
- A sua filha saiu daqui, foi para sul – diz-lhe o dono do bar.
- Para sul, para onde?
- Não sei dizer. Parece que ninguém sabe.
Não sabe bem onde fica o sul, será muito longe, não tem como ir, mas voltará a este e a outros bares da beira de estrada, até saber o que se passou. Não desiste dela. Como poderia fazê-lo? Não pode.


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Bom Natal

Parece que o tempo é especial, e é. Temos uma predisposição diferente, somos  ouvintes, atenciosos, amigos, colaborantes, não indiferentes ... Que este espírito perdure por todo o ano.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Prémio Nobel da Paz

Malala recebeu, juntamente com um médico indiano activista contra o trabalho infantil, o prémio Nobel da Paz. Obviamente que Malala é mais do que uma menina vítima do extremismo talibã e da negação dos direitos das mulheres, nomeadamente o direito à educação. É também um símbolo pelo que representa, pelo que sinaliza, cada vez que intervém nos média. Malala somos todos nós, de algum modo; todos os que lutam diariamente pelos direitos humanos. 

                                                                                                  

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Lá longe, na minha infância

Queria falar, neste Natal, dos que, longe de casa, são imigrantes, refugiados, deslocados..., mas regressei à minha infância. 
Anos sessenta. Era criança e não percebia muitas coisas. Não percebia, porque homens, pela calada da noite, em segredo, partiam, a"salto", para a França, atravessando montes e vales, levados por "passadores". Agora sei, fugiam da miséria em que viviam. Iam à procura de dinheiro para alimentar as suas famílias, mandar os filhos à escola, fazer uma casa. Era assim. Nunca teria ido estudar, se o meu pai não tivesse ido para a França. Homens que deixavam as suas casas, os seus filhos, as suas mulheres e partiam, quantos sacrifícios, para chegar à fronteira francesa e quem sabe a Paris, e aí arranjar um alojamento e um trabalho, precários que fossem. 
Era criança e não percebia muitas coisas. Não percebia por que jovens, de dezoito, dezanove, anos e alguns até menos, também, fugiam a "salto", para França e a Alemanha. Ficavam desertores, não podiam regressar, se voltassem ao seu país seriam presos. Agora sei, fugiam à guerra, à guerra colonial, uma guerra de que talvez pouco ou nada soubessem, senão que lhes podia roubar a vida.