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terça-feira, 13 de maio de 2014

Tarrafal, o prisioneiro

Há anos que procurava uma paz, uma certeza qualquer, de que o retorno àquele campo não seria um sofrimento a somar às memórias vivas e cruéis do sítio onde passara mais de sete anos da sua juventude, trabalhando, cumprindo ordens, guardando ideias, lendo livros, arquitetando revoluções…, criando uma rotina, a possível, que impunha a si próprio para não endoidecer.
Salvaguardar a saúde mental, que a física essa ressentir-se-ia – mesmo quando, nessa idade, se julga possível passar por tudo sem marcas no corpo - era a primeira das preocupações. Marcas de meses seguidos num total isolamento, numa sela fechada, húmida, onde mal cabia uma pessoa, sem cama, com um balde e uma refeição diária.
Como se consegue sobreviver a isto? Só uma convicção interior fortíssima, só um dever de consciência, uma responsabilidade, uma inabalavel defesa da dignidade humana – em que vergar, ajoelhar, comprometer..., mesmo quando os interrogatórios e a tortura pareciam deixá-lo à beira de uma quase semi consciência, era o impensável. Sabia quiem era e porque estava ali. Sabia o que devia a si e aos outros que como ele lutavam contra o colonialismo português.

sábado, 10 de maio de 2014

As jovens nigerianas raptadas

As jovens raptadas, quase trezentas, de uma escola secundária, só agora, começam, por pressão internacional, a  ser preocupação do país. É a  demência fundamentalista em estado puro, raptam-se inocentes, em nome de Deus, para serem vendidas como escravas sexuais, sabe-se lá para onde a quem, com o argumento, pasme-se, de estudarem numa escola. A educação em vez de um direito é um crime, para estas mentes terroristas.
O que mais perturba é a maldade, é a desumanidade, é o obscurantismo que, por este caminho,  tomará outras regiões do mundo, mesmo quando pensávamos que a modernidade e a tecnologia contemporanea tinham feito um progresso de não retorno. Não é assim, há muitos anos zeros para a humanidade e para civilização. A volta às cavernas é uma indecência humana.


sábado, 3 de maio de 2014

A menina egípcia que vendia marcadores de papiro (8)

Não sei bem, mas eram, seguramente, mais de uma dezena de crianças que vendiam marcadores e outros pequenos objectos, junto a uma fábrica de transformação de papiro, onde os turistas param para observar o processo de produção e fazer compras.
Era uma menina muito bonita! Não tinha mais de seis ou sete anos, no máximo. Muito pequenina, muito esperta, vestidinha à árabe a vender aos turistas marcadores de papiro. Contava, na perfeição, em inglês, francês, espanhol, e repetia, sem parar, os números até doze, número que correspondia ao “molhinho” de marcadores que vendia por um dólar.
Toda a gente, literalmente toda, enquanto eu estive a observar, lhe comprou os marcadores. Ela era o centro de todas as atenções, impossível não a fixar, pela graça, pela desenvoltura, pelo modo como uma criança, tão pequena e tão linda, contava marcadores de papiro.
A mãe vigiava-a, por perto, mas mesmo assim não evitava que os “maiorzinhos” não achassem piada à freguesia que conseguia atrair e lhe dessem encontrões, a obrigassem a sair da frente e a sentassem a um canto. Por um lado, percebo, ela tirava-lhes todo o negócio, conseguia todas as atenções. Mas continuava. Contava, repetidamente, sem parar, não desistia, e isso foi o mais impressionante, não desistiu nunca, a determinada altura chorava convulsivamente, lágrimas rosto abaixo, mas continuava: one two, three, …e mais um molhinho de marcadores, e outro, e outro e mais outro … .
- Minha menina, não podes brilhar tanto! Tens de deixar os outros também vender. Vá lá, tem de ser assim! Não te dão encontrões e socos por não gostarem de ti, apenas porque não suportam não vender nada aos turistas que param junto a fábrica de transformação do papiro. Vai descansar um pouco, cuidar da tua voz, já rouca de tanto apregoar marcadores de papiro, deixa os outros meninos também venderem um bocadinho. Não quero ver-te chorar mais!

                                                                                     Agosto, 2005, arredores do Cairo 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Crianças e jovens que conheci (7) - Reinserção Social

- Os teus pais estão presos?
- Estão, há “bué” de tempo....
Faz silêncio. Olha-me intensamente, não sei se com raiva se com súplica, como se eu tivesse alguma coisa a ver com tudo o que lhe estava a acontecer e pudesse ajudá-lo.
- O que é que tem estarem presos? – Pergunta-me, zangado.
- Eu não disse nada. Esperavas que tivesse feito algum comentário?
- Andavam a vender (droga), andavam, e depois? O que é que tem? Também já vendi, agora não vendo, não vou vender mais. Não vou vender, está a ouvir-me (altera o tom de voz).
- Sim, estou a ouvir-te. Costumas ir à Associação aqui do bairro?
- Não vou, é tudo mentira, mentem-me, mentiram-me, sempre.
- Não acreditas neles? Porquê?
- Prometeram comida, trabalho e “cenas” dessas e continuo a passar fome, tenho que roubar, percebe, tenho de roubar, de roubar, percebe, veja se percebe....
Repete vezes sem conta a mesma coisa, elevando a voz, agora, quase em fúria.
- E tu o que é que lhes prometeste?
- Nada, não prometo nada, não me chateiem…, vem a “bóbia, bate num gajo e dia vamos presos.
- Achas que vais preso?
- Se vou preso? Todos os meus amigos estão presos, até aos dezasseis anos um gajo anda na boa, depois toma, caem em cima e toca a andar. Qualquer dia vou. É de certezinha…
- Podes não ir, isso só depende de ti.
- Não me importo, não me importo mesmo...
- Eu importo-me que tu vás preso e há outras pessoas que também se importam, tenho a certeza. Tens a noção de que há pessoas que se importam contigo ou não, que querem cuidar de ti. Tens de deixar que te ajudem, seres o primeiro a cuidar de ti.
- Como? Não sou capaz. Não sou capaz, o problema maior é a minha cabeça, a minha cabeça, entende?
- Entendo, mas sei que toda a gente é capaz, é primeiro preciso decidires que queres aceitar a ajuda e depois esforçares-te por consegui-lo. É assim que todos fazem ou julgas que não.
- Não me venha com tretas, dona, estou à rasca, estou à rasca...
- Calma,


(um jovem que encontrei num colégio do instituto da reinserção social, nos finais dos anos noventa) 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (6) - A Vera

Naquele ano, a Vera ia ser minha aluna. Tinha prometido a mim própria que iria fazer tudo o que fosse possível por ela. Mas, fazer tudo, talvez não fosse muito. Tentaria, disso tinha a certeza. Comecei a dar-lhe toda a atenção, a pedir-lhe ajuda para pequenas coisas, e a Vera começou a dizer algumas palavras: os livros, o quadro, a pasta…, até que, pouco a pouco, começou a dizer frases completas: - é para ir buscar os livros da professora? É para apagar o quadro? É para procurar dentro da pasta? ... E assim se foi integrando, mas sempre muito dependente de mim, como se eu lhe desse uma segurança que não tinha em mais lado nenhum. Mesmo nos intervalos queria sempre ficar na sala. Muitas vezes, eu saia por causa dela, mas continuava a segurar-me a mão, vejo isso ainda agora quando olho fotografias de dias de festa tiradas nesses tempos de escola.
A Vera estava presa a mim, e eu a ela. Esteve comigo dois anos, por fim falava de tudo, dos irmãos, do pai, da mãe, da casa, do irmão que ia nascer…, parecia outra, já não era a menina assustada e triste, mas dependia demasiado de mim, da minha atenção, mas eu também dependia dela. Estranha relação... A mim magoou-me ter de lhe dizer adeus. Não sei o que se passou a seguir, gosto de pensar que se tornou um menina mais autónoma e mais feliz. Ajudaste-me tanto, Vera! Sabes, continuas a fazer-me falta. 


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Crianças e jovens que eu conheci (5) - O Rui morreu

Leva a irmã pela mão a caminho da escola e fala-me como se me conhecesse muito bem. Disfarço, entro na conversa, intrigadíssima: quem seria aquele jovem que eu não reconheço. Teria sido meu aluno? Era impossível, com certeza que não. Se tivesse sido, reconhecê-lo-ia.
- Tenho saudades desta escola, agora, lá em baixo é tudo diferente.
- Estás em que ano?
- No 6º ano, mas este ano não sei se poderei passar, por causa do meu problema de saúde, há dois meses que não vou à escola. Mas vou ficar bom e recuperar. É assim, tenho que ficar bem, já estou quase bem, mas foi difícil, muito difícil … . 
- Sim, vais ficar bom – digo-lhe, enquanto lhe fixo de novo o rosto. Já sei quem é: é o Rui. Agora, percebo porque não o reconheci, tem um problema de saúde grave, a quimioterapia, a medicação….
Aquele menino, agora com um corpo de adolescente, marcado pela doença, falava-me como um adulto. Como te ia reconhecer, Rui! Mas, és tu, já não tenho dúvidas.
E a conversa continuou até à escola. Nas semanas seguintes, encontro-o várias vezes. O que mais me impressionava era a força de vontade, os projectos, os sonhos, a vida, o futuro: “vou fazer, tenho de fazer, vou ajudar o meu pai, a minha mãe, agora, estou em casa, cuido da minha irmã, lavo a loiça à minha mãe, estou melhor, estou melhor, mas foi difícil, muito difícil, quando estiver bom, vou ficar bom …”.
Um dia deixou de aparecer, dizem-me que foi hospitalizado de novo. Piorou. Não tenho coragem de perguntar mais nada a ninguém. Não demorou muito a chegar a trágica notícia: - O Rui morreu.
Não suportei. Por que morrem os meninos? Por que se morre aos doze anos, quando tudo o que se quer é viver? Por que se morre quando se têm tantos projectos e tantos sonhos?
…………………………………………………(Arredores de Lisboa, 1991)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (4) - O menino árabe

- Um dólar, um dólar, um euro, um euro …, madame, madame, señora, señora! - Eram meninos de sete, oito, nove anos que traziam pequenos objectos que tinham feito com ramos de palmeira entrelaçados: cestinhas, flores, pássaros, e não sei que mais.
Dão os objectos (na realidade, pretendem vender) a uma senhora, a outra e a outra, até ficarem sem nenhum. Quando eu quero comprar, um dos meninos, muito rapidamente, começa a tecer alguma coisa, mas, como já não havia tempo, entrega-ma, tal qual, e diz-me: - É um pájaro, é um pájaro (é um pássaro, é um pássaro)! 
- Querido menino, como é um pássaro!
- Não vê já a cabeça? Não está terminado, mas é um pássaro. A senhora se quiser vê um pássaro – diz-me num espanhol imperfeito, mas que entendi perfeitamente.

- É um pássaro, sim! Como não é um pássaro? Tens razão, já o vejo. 
A porta do autocarro fecha-se e o menino acena-me contente, por ter conseguido a moeda. Fico emocionada e penso na história do Principezinho, será que alguma vez este menino ouviu falar do principezinho e da ovelha dentro da caixa com buracos: “a ovelha que tu queres, está lá dentro”. 
Igual. O pássaro que eu quero, está aqui, neste projecto de pássaro. É só imaginar: grande, pequeno, de poucas ou muitas cores, depende do que eu desejar. Apetece-me dizer-te: - Não voltes a fazer pássaros completos, faz pássaros para os outros imaginarem, para os outros sonharem. Sim, que imaginar também é ver.
(Agosto, 2002, no palmeiral de Marraquexe)