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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Crianças e jovens que conheci (7) - Reinserção Social

- Os teus pais estão presos?
- Estão, há “bué” de tempo....
Faz silêncio. Olha-me intensamente, não sei se com raiva se com súplica, como se eu tivesse alguma coisa a ver com tudo o que lhe estava a acontecer e pudesse ajudá-lo.
- O que é que tem estarem presos? – Pergunta-me, zangado.
- Eu não disse nada. Esperavas que tivesse feito algum comentário?
- Andavam a vender (droga), andavam, e depois? O que é que tem? Também já vendi, agora não vendo, não vou vender mais. Não vou vender, está a ouvir-me (altera o tom de voz).
- Sim, estou a ouvir-te. Costumas ir à Associação aqui do bairro?
- Não vou, é tudo mentira, mentem-me, mentiram-me, sempre.
- Não acreditas neles? Porquê?
- Prometeram comida, trabalho e “cenas” dessas e continuo a passar fome, tenho que roubar, percebe, tenho de roubar, de roubar, percebe, veja se percebe....
Repete vezes sem conta a mesma coisa, elevando a voz, agora, quase em fúria.
- E tu o que é que lhes prometeste?
- Nada, não prometo nada, não me chateiem…, vem a “bóbia, bate num gajo e dia vamos presos.
- Achas que vais preso?
- Se vou preso? Todos os meus amigos estão presos, até aos dezasseis anos um gajo anda na boa, depois toma, caem em cima e toca a andar. Qualquer dia vou. É de certezinha…
- Podes não ir, isso só depende de ti.
- Não me importo, não me importo mesmo...
- Eu importo-me que tu vás preso e há outras pessoas que também se importam, tenho a certeza. Tens a noção de que há pessoas que se importam contigo ou não, que querem cuidar de ti. Tens de deixar que te ajudem, seres o primeiro a cuidar de ti.
- Como? Não sou capaz. Não sou capaz, o problema maior é a minha cabeça, a minha cabeça, entende?
- Entendo, mas sei que toda a gente é capaz, é primeiro preciso decidires que queres aceitar a ajuda e depois esforçares-te por consegui-lo. É assim que todos fazem ou julgas que não.
- Não me venha com tretas, dona, estou à rasca, estou à rasca...
- Calma,


(um jovem que encontrei num colégio do instituto da reinserção social, nos finais dos anos noventa) 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (6) - A Vera

Naquele ano, a Vera ia ser minha aluna. Tinha prometido a mim própria que iria fazer tudo o que fosse possível por ela. Mas, fazer tudo, talvez não fosse muito. Tentaria, disso tinha a certeza. Comecei a dar-lhe toda a atenção, a pedir-lhe ajuda para pequenas coisas, e a Vera começou a dizer algumas palavras: os livros, o quadro, a pasta…, até que, pouco a pouco, começou a dizer frases completas: - é para ir buscar os livros da professora? É para apagar o quadro? É para procurar dentro da pasta? ... E assim se foi integrando, mas sempre muito dependente de mim, como se eu lhe desse uma segurança que não tinha em mais lado nenhum. Mesmo nos intervalos queria sempre ficar na sala. Muitas vezes, eu saia por causa dela, mas continuava a segurar-me a mão, vejo isso ainda agora quando olho fotografias de dias de festa tiradas nesses tempos de escola.
A Vera estava presa a mim, e eu a ela. Esteve comigo dois anos, por fim falava de tudo, dos irmãos, do pai, da mãe, da casa, do irmão que ia nascer…, parecia outra, já não era a menina assustada e triste, mas dependia demasiado de mim, da minha atenção, mas eu também dependia dela. Estranha relação... A mim magoou-me ter de lhe dizer adeus. Não sei o que se passou a seguir, gosto de pensar que se tornou um menina mais autónoma e mais feliz. Ajudaste-me tanto, Vera! Sabes, continuas a fazer-me falta. 


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Crianças e jovens que eu conheci (5) - O Rui morreu

Leva a irmã pela mão a caminho da escola e fala-me como se me conhecesse muito bem. Disfarço, entro na conversa, intrigadíssima: quem seria aquele jovem que eu não reconheço. Teria sido meu aluno? Era impossível, com certeza que não. Se tivesse sido, reconhecê-lo-ia.
- Tenho saudades desta escola, agora, lá em baixo é tudo diferente.
- Estás em que ano?
- No 6º ano, mas este ano não sei se poderei passar, por causa do meu problema de saúde, há dois meses que não vou à escola. Mas vou ficar bom e recuperar. É assim, tenho que ficar bem, já estou quase bem, mas foi difícil, muito difícil … . 
- Sim, vais ficar bom – digo-lhe, enquanto lhe fixo de novo o rosto. Já sei quem é: é o Rui. Agora, percebo porque não o reconheci, tem um problema de saúde grave, a quimioterapia, a medicação….
Aquele menino, agora com um corpo de adolescente, marcado pela doença, falava-me como um adulto. Como te ia reconhecer, Rui! Mas, és tu, já não tenho dúvidas.
E a conversa continuou até à escola. Nas semanas seguintes, encontro-o várias vezes. O que mais me impressionava era a força de vontade, os projectos, os sonhos, a vida, o futuro: “vou fazer, tenho de fazer, vou ajudar o meu pai, a minha mãe, agora, estou em casa, cuido da minha irmã, lavo a loiça à minha mãe, estou melhor, estou melhor, mas foi difícil, muito difícil, quando estiver bom, vou ficar bom …”.
Um dia deixou de aparecer, dizem-me que foi hospitalizado de novo. Piorou. Não tenho coragem de perguntar mais nada a ninguém. Não demorou muito a chegar a trágica notícia: - O Rui morreu.
Não suportei. Por que morrem os meninos? Por que se morre aos doze anos, quando tudo o que se quer é viver? Por que se morre quando se têm tantos projectos e tantos sonhos?
…………………………………………………(Arredores de Lisboa, 1991)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (4) - O menino árabe

- Um dólar, um dólar, um euro, um euro …, madame, madame, señora, señora! - Eram meninos de sete, oito, nove anos que traziam pequenos objectos que tinham feito com ramos de palmeira entrelaçados: cestinhas, flores, pássaros, e não sei que mais.
Dão os objectos (na realidade, pretendem vender) a uma senhora, a outra e a outra, até ficarem sem nenhum. Quando eu quero comprar, um dos meninos, muito rapidamente, começa a tecer alguma coisa, mas, como já não havia tempo, entrega-ma, tal qual, e diz-me: - É um pájaro, é um pájaro (é um pássaro, é um pássaro)! 
- Querido menino, como é um pássaro!
- Não vê já a cabeça? Não está terminado, mas é um pássaro. A senhora se quiser vê um pássaro – diz-me num espanhol imperfeito, mas que entendi perfeitamente.

- É um pássaro, sim! Como não é um pássaro? Tens razão, já o vejo. 
A porta do autocarro fecha-se e o menino acena-me contente, por ter conseguido a moeda. Fico emocionada e penso na história do Principezinho, será que alguma vez este menino ouviu falar do principezinho e da ovelha dentro da caixa com buracos: “a ovelha que tu queres, está lá dentro”. 
Igual. O pássaro que eu quero, está aqui, neste projecto de pássaro. É só imaginar: grande, pequeno, de poucas ou muitas cores, depende do que eu desejar. Apetece-me dizer-te: - Não voltes a fazer pássaros completos, faz pássaros para os outros imaginarem, para os outros sonharem. Sim, que imaginar também é ver.
(Agosto, 2002, no palmeiral de Marraquexe)

sábado, 19 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (3) - a menina adotada

Passou-se, num dia de Janeiro, numa terra africana, numa casa, onde passava uns dias. Não compreendi, não compreendo, como se pode dar uma filha. Para mim, foi e é incompreensível, mesmo quando parece ser inevitável e, naquele caso, não parecia.
Não esquecerei nunca os olhos e o choro da menina. Um choro contínuo e convulsivo, como se pressentisse, como se tivesse consciência de tudo, do passado, do presente e do futuro.
- Não venha para aqui, não venha para aqui, que a minha filha não a pode voltar a ver – pede a mãe adotiva, insistentemente, à mãe biológica – juntas, porventura pela última vez, no dia do baptizado da menina, por coincidência, no dia em que foi definitivamente entregue aos pais adoptivos, um casal italiano.
- Está bem, não vou – diz, em lágrimas, a mãe verdadeira (desculpem se utilizo este adjectivo, naquele momento, foi assim que senti)
 – Sei que se ela me visse deixava de chorar – insistia.


quinta-feira, 17 de abril de 2014

Crianças e jovens que conheci (2)

No dia do passeio escolar, chegaste com um fatinho tão bonito, só te faltava a gravata, parecia que ias para uma festa. E ias mesmo. João, foi tão importante para ti a ida ao Jardim Zoológico, e como te portaste bem! Claro que precisaste que a professora estivesse muito atenta, mas eu também estive atenta aos outros meninos. Viste tudo, participaste, partilhaste o lanche, e que lanche! O teu irmão, de vez em quando, olhava para ti, a vigiar-te, com a preocupação de irmão.
No final, estávamos todos felizes, e tu mais que ninguém. Portaste muito bem, João! Eu tinha tanta vontade que tu fosses como todos os outros meninos! Brincasses, aprendesses, saísses, não pensei se era ou não complicado levar-te ao passeio, queria levar-te e pronto, mostrar-te que podias fazer tudo os que outros faziam, e podias.
O João mudou completamente, nesse ano lectivo. Apesar dos seus problemas de linguagem e das suas dificuldades, começou a aprender, a integrar-se, a ter amigos, a brincar com os outros. No final do ano, sabia ler e escrever. Pela primeira vez, depois de vários anos na escola, tinha aproveitamento.
O que será feito de ti, João? Sabes, para mim continuas a ser muito importante. Recordo como eras traquina, como me punhas a cabeça em água, mas também como me emocionavas cada vez que me olhavas e dizias: - Professora aqui, professora olha, professora ajuda, professora desculpa, professora, professora….
Como não ia ajudar! Como não ia desculpar! Até te encontrar, não achava possível uma ligação tão forte a menino meu aluno.                                                                    ( Em 1984, numa escola do concelho da Azambuja 

Crianças e jovens que conheci (1)

São excertos de textos sobre crianças e jovens, com nomes fictícios, a quem negaram, em algum ponto do seu curto caminho a dignidade que mereciam ou a quem o destino pregou uma partida. 
O que faço é procurar escutar a voz interior destes meninos que, em muitos casos, ou em todos, mesmo, permanece intacta. Negamos-lhes as oportunidades, matamos-lhes os sonhos, mas a pessoa está, permanece. Sai  de entre a multidão, de entre os ruídos e aparece para nos convocar, para nos desinstalar. Não podemos dizer que não a vemos que não a ouvimos. Que respondo? Que respondemos