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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Todos vivíamos nos arredores de Paris (2)

Naquela altura, anos sessenta, a França era uma realidade diária, naquela aldeia da Beira Alta, quase na fronteira com Espanha. Estava ali, nas ruas, nas conversas e nas vidas de todos os habitantes. Se víamos duas ou mais pessoas a conversar na rua era quase certo que falavam de familiares a viver em França. Não havia família que não tivesse alguém naquele país. Em muitos casos, todos estavam lá, tinham ficado, apenas, algumas mães com os filhos e os avós, já de idade. O mesmo acontecia com a minha família. De algum modo, eu, a minha mãe, os meus irmãos, os meus avós, tal como o resto das pessoas daquela terra, também estávamos vivendo nos arredores de Paris.
Quando hoje penso no que era, nessa altura, para mim a França, Paris …, não consigo chegar a qualquer imagem, por mais difusa que seja. Paris era as pessoas que conhecia, que chegavam invariavelmente cada mês de Agosto e que eu julgava viverem lá. Talvez houvesse pouca gente a falar do país, da cidade, a mostrar qualquer fotografia que fosse. Também nunca, na minha imaginação, estiveram os “bidonvilles”, as “cités”; estavam, isso sim, as miniaturas da Torre Eiffel e do General De Gaulle, pequenas lembranças que traziam os “franceses” e que ficavam a enfeitar a chaminé da cozinha ou o móvel da sala. Mais tarde, vim a constatar que até para os emigrantes Paris era uma cidade desconhecida. Viviam nas margens. Atravessavam-na, apenas.

domingo, 29 de novembro de 2009

Emigração, sempre (1)

Nenhuma experiência é mais real, mais continuada e mais presente, na minha infância, na minha adolescência e até na minha vida adulta, do que a da emigração. - "Foram para a França"; - "Estão na França"; "Escreveram da França"; "Vieram da França"; "Casou na França"; "Morreu na França"; … Cresci a ouvir isto. Envelheço a ouvir isto.
Mais de cinquenta anos de emigração, a 1ª geração quase morta, a 2ª a entrar na reforma, a terceira e a quarta gerações cada vez mais integradas no país onde nasceram, cresceram e se tornaram adultos, numa separação permanente de que só os primeiros sentem mágoa. Todos os outros se foram progressivamente afastando, sem nostalgia, duma terra e de um povo dos quais já não guardam grandes recordações. O sentimento de ser emigrante diluiu-se ou não existe neles e, de certo, que não tardará a acabar por completo. E com isso acabarão os meses de Agosto, as festas e as romarias dos emigrantes. Está prestes a fechar-se um ciclo.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A burka

Uma das imagens mais fortes que recordo muitas vezes é uma cena do filme "Kandahar" (mas podia ser uma qualquer imagem real, duma qualquer rua ou cidade do Afeganistão e de muitos outros lugares): um grupo de mulheres, vinte, trinta, não sei bem, caminhando de costas, no imenso deserto, com montanhas ao fundo. À medida que o plano se vai abrindo e se vão afastando de nós, diluem-se na paisagem até se confundirem com as montanhas e desaparecerem. Já antes, mesmo próximas, não as identificávamos. Ninguém sabe se são adolescentes, jovens adultas, mulheres maduras ou mulheres de idade; ninguém sabe de que cor são os seus olhos ou os seus cabelos, que marcas deixaram nelas o tempo, a vida … Não sabemos nada. E elas sabem? O que sabem elas? O que desejam elas?

sábado, 21 de novembro de 2009

Quero ouvir o que tens para me contar

Se eu pudesse acabava com todos os"...ismos" – humanismo, etnocentrismo, multiculturalismo…. – que têm servido para falar dos homens e das suas vidas como entidades abstractas, e não porque não me interessem as grandes construções teóricas, mas porque verificamos, a cada dia, que a maior parte serve para muito pouco. Passava a falar de ti, de mim, de nós, aqui, agora, num contexto marcado por condicionalismos que nenhuma teoria pode explicar, por ser algo de novo, de diferente, de renovado, como corresponde à essência do humano: a individualidade absoluta, a não repetição. Passava muito mais tempo à procura de histórias verdadeiras, a ouvir o Sasha, o Mamadou, a Shaila, o Xiang, a Joana…, para ver se percebia melhor o que é viver bem uns com os outros.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

"A razão cordial", para uma cidadania do Séc. XXI

Muitas vezes ouvimos dizer: “não sou daqui, isso não me diz nada, não tem a ver comigo, não me toca…”. Participar é, de facto, mais do que fazer parte, é pertencer: “ser daí, sentir-se apelado, identificado, tocado…”
Há no viver em comum uma dimensão ao nível dos sentimentos, que ultrapassa em muito a argumentação racional e o cumprimento de direitos e deveres. Adela Cortina (filósofa espanhola) fala de uma cidadania fundada na razão cordial – em que a virtude da prudência é substituída pela virtude da cordura (termo espanhol para o qual parece não haver uma boa tradução em português) – que integra “inteligência, sentimento e coragem”, ou seja, no viver com os outros é importante a capacidade de argumentar segundo regras, de nos reconhecermos uns aos outros como interlocutores válidos, mas também a capacidade de estimar valores, de entrar em sintonia, de compadecer-se e de se envolver. Quem não tem a capacidade da estima e da compaixão é incapaz de descobrir as injustiças e de sentir em relação aos outros aquelas necessidades que só a gratuidade pode assegurar.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Esfaqueadas, mortas

Há poucos dias, mais uma vez, duas mulheres são mortas no quarto andar de um prédio, numa urbanização da linha de Sintra, não recordo exactamente o local. O indivíduo que as matou suicidou-se em seguida, deixando a porta de casa entreaberta para que alguém, eventualmente, se apercebesse da tragédia ali ocorrida. Coisa tremenda, mas infelizmente não encerra nada de insólito, já vimos outros casos no passado e veremos outros no futuro, é que para a violência doméstica terminar não chega existirem leis, é necessário existir sensibilidade, proximidade, vizinhança e compromisso de denúncia e de acção, é uma questão de cidadania e não apenas daquelas pessoas. Quando se questionam os moradores do prédio, ninguém ouviu, ninguém viu, ninguém desconfiou..., "dizem que ela tinha 23 anos, que vivia com este senhor há três meses, que a relação não estava bem, que veio cá a casa com uma amiga, e aconteceu isto".

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Aung San Suu Kyi

Quem não conhece a história, ao olhar a casa, o lago, as árvores, dirá que o cenário é de sonho. Não é, como sabemos bem. Naquela casa, em prisão domiciliária, a líder da oposição birmaneza, Suu Kyi, 64 anos, Prémio Nobel da Paz, em 1991, passou 14 dos últimos 20 anos. Não cometeu nenhum crime, não agrediu, não falsificou, não matou..., está presa, apenas, porque acredita na democracia, nas liberdades e se preocupa com o seu povo, como já antes o seu pai fizera. Deixou Londres, em 1988, onde vivia, para assistir ao funeral da mãe. Embrenha-se na política, concorre às eleições de 1990, ganha-as, mas não governará, em vez disso, é perseguida e colocada em prisão domiciliária, por ordens de uma Junta Militar que governa o país.
Nas últimas aparições públicas (em Maio de 2009, julgo, altura em que devia ser posta em liberdade e é de novo acusada e presa, por ter recebido um americado que, a nado, atravessou o lago e entrou em sua casa), parecia, fisicamente, muito fragilizada. Já não tinha flores a enfeitar os seus cabelos, já não tinha o sorriso aberto de antes, mas o olhar continua com a intensidade de sempre, a iluminar o caminho àqueles que acreditam e lutam pela dignidade de todos os seres humanos.