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quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (3)

 Visivelmente perturbado e com um discurso sem nexo, diz aos voluntários que tentam acalmá-lo:

- Tenho uma fortuna para receber, mas não posso, porque me roubaram os papéis do banco. Roubaram-mos aqui. Vou lá todos os dias, chamam a polícia e não me deixam entrar.

- Não quer uma sopa quente e o resto que aqui temos para si – diz-lhe um dos jovens.

- Não me chateiem, desapareçam, não preciso de nada…

- Fica aqui o saco; quando o senhor quiser come, não há problema.

Dos que vivem na rua, os doentes mentais são os mais frágeis dos frágeis. Nada se compara, a um delírio que permanentemente os atormenta.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (2)

 Aparenta ter mais de oitenta anos, de barba branca, por fazer…. Neste tempo, vésperas de Natal, do que mais sente falta é da família que está longe, espalhada, alguma na ilha de Santiago (Cabo Verde), outra na América e outra nos arredores de Lisboa. Não procura ninguém e nem ninguém o procura. Pode lá haver maior solidão – pensamos nós.

- Não estou só, tenho uma companheira de muitas noites e dias, mas às vezes desaparece e nessas alturas fico sozinho e doe-me tudo: o corpo e a alma. Preciso dela, é muito decidida, se não fosse ela não tinha arranjado o bilhete de identidade e não recebia nada do Estado.

- É um grande amor – diz-lhe o jovem voluntário que lhe entrega comida quente.

- É, mesmo – e começa a chorar.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (1)

 “Enrolada num cobertor, uma mulher dorme sobre o cimento do passeio, abrigada apenas pelo muro que ladeia o quarteirão. Quando ouve a porta de uma carrinha abrir-se, desperta, com movimentos lentos, da sua letargia. O som já lhe é familiar. É a equipa da Legião da Boa Vontade (LBV) que chega com sopa, leite e pão. Provavelmente, a única refeição quente que tomou ao longo do dia.

O cabelo está molhado. A face inchada, adquiriu a tez arroxeada característica das queimaduras provocadas pelo frio. Quase sem proferir palavra, a dona Ana aceita de bom grado a sopa que lhe é oferecida e come-a com a mesma paciência que utilizou para se levantar. Quando acaba, pede um cobertor e enrola-se uma vez mais de encontro ao cimento frio.”

domingo, 13 de dezembro de 2020

O João (1)

 Com uma aparência de desleixo, afastado de todos, deixa-se cair contra o muro. Abandona-se como se desistisse de tudo.

- Deixem-me, deixem-me, deixem-me... – gritava, ao mesmo tempo que dizia palavrões.

- Estás bem? Sentes-te bem?

- Como posso estar bem? Vê além a “bófia”? Vêm de carro e armados, prontos para dar porrada, para a “bófia” todos aqui são drogados e ladrões.

- E não são, sei bem que não. 

- Claro que não. Há “bué” de gente que trabalha e putos que andam na escola.

- E tu andas?

- Não. Já andei, mas não gostava, não sabia nada, era perder tempo. Quando os “cotas” foram dentro nunca mais voltei à escola.

- Os teus pais estão presos?

- Estão, há “bué” de tempo....

Faz silêncio e olha-me, intensamente, não sei se com raiva se com súplica, como se eu tivesse alguma coisa a ver com tudo o que estava a acontecer e pudesse ajudá-lo.

- O que é que tem estarem presos? – Pergunta-me, zangado.



quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Hoje, é dia Internacional dos direitos humanos

 

Todos diferentes, todos iguais (Foto: shutterstock)

“Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência devem agir uns com os outros em espírito de fraternidade” (1º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em Paris a 10 de Dezembro de 1948)

Fica consagrado o reconhecimento das capacidades naturais que fazem de nós o que somos: seres racionais, inteligentes, livres e iguais. Na verdade, todos os seres humanos pensam, têm razões e fins a determinar a sua ação, sabem o que querem, porque e para que agem e por isso habitam o mundo intervindo nele.

 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

A contingência humana…

Morre-se assim. Morreu a cantora de 21 anos, Sara Carreira, num desastre de viação. Não temos domínio sobre a nossa vida. A comoção é geral, porque ela, tal como toda a família, era uma figura pública.

Desde do primeiro comunicado a imprensa, pediram respeito e privacidade, quiseram que o velório e o funeral fossem privados. Entendo isso. Deve respeitar-se em absoluto a vontade da família. A dor é indiscritível, não se pode, nem se sabe, falar de tamanho sofrimento.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Eduardo Lourenço (1923-2020): O Sábio

 Eduardo Lourenço é um sábio. Sábio, mesmo.  Não porque leu muito, que leu; não porque escreveu muito, que de facto escreveu; mas porque pensa muito e  toca no essencial, com uma clareza e desprendimento que desconcertam. 

Outro dia, não sei já em que programa televisivo, dizia a uma jovem que em vez de ler muitos autores, se concentrasse num autor, como se lhe dissesse que a dispersão não ajuda ao pensar, ao pensar próprio, única coisa que, ao limite, interessa .

(texto que publiquei em 15/09/2012)