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segunda-feira, 3 de julho de 2023
O cantor de ópera
segunda-feira, 28 de dezembro de 2020
Sem-abrigos nas ruas de uma cidade (6)
São dois irmãos, marcados pelo alcoolismo, que arrumam carros, há mais de vinte anos, à entrada de um centro comercial. Primeiro, contam as moedas para ver se já chegam para comprar tabaco. Depois, contam as moedas para ver se já chegam para comprar o que comer e beber (sempre vinho). Se é suficiente, compram comida, se é pouco comem pão sem nada ou com mortadela.
Uma vez perguntei-lhes:
- Têm família?
- Ele – aponta para o irmão – tem filhos,
mas não querem saber. Estamos a arrumar carros desde que a minha mãe morreu. Pedimos,
mas não roubamos nada a ninguém. Se o dia corre mal, esperamos até mais tarde e pessoas do
supermercado dão-nos comida.
sábado, 26 de dezembro de 2020
Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (5)
Tem 21 anos e foi abandonada pela mãe quando tinha quatro.
- A minha mãe seguiu a vida dela sem
olhar para trás, deixou-me em casa do meu pai, mas como a minha madrasta não me
via com bons olhos andei de um lado para o outro, uma vez na minha avó, outra
no meu pai, até que um dia fugi e vim para aqui, para esta casa abandonada
juntar-me a um grupo.
- Consumiam drogas?
- Claro, eu também; se não fosse a
droga, não tinha ido para a prostituição. Quero sair disto, mas é impossível, quero
uma vida como a gente normal. A assistente social sabe disso e prometeu-me arranjar
lugar num albergue e um tratamento. Já lhe garanti que desta vez não fujo. Não fujo,
como fiz da outra vez.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2020
Sem-abrigos nas ruas de uma cidade (4)
Um casal, sentado no muro, na casa dos trinta anos, espera a carrinha.
- Tenho três filhos, mas só as duas
mais pequenas vivem connosco. O meu filho mais velho não é filho dele, vive num
lar de rapazes – diz a mulher.
Estão os dois desempregados, não vivem
na rua, mas é como se vivessem – diz-nos um dos voluntários.
– Quem é que dá trabalho a um tipo que
esteve preso? Ninguém. Foi a puta da droga que deu cabo da minha vida. Já não
consumo, mas fumo tabaco como uma chaminé.
Comem a sopa quente e o resto que lhes
distribuem e levam para as filhas pacotes de leite, pão e bolachas,
Ela agradece e despede-se. Não parece
tão revoltada como o companheiro.
quinta-feira, 24 de dezembro de 2020
Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (3)
Visivelmente perturbado e com um discurso sem nexo, diz aos voluntários que tentam acalmá-lo:
- Tenho uma fortuna para receber, mas não
posso, porque me roubaram os papéis do banco. Roubaram-mos aqui. Vou lá todos
os dias, chamam a polícia e não me deixam entrar.
- Não quer uma sopa quente e o resto que
aqui temos para si – diz-lhe um dos jovens.
- Não me chateiem, desapareçam, não
preciso de nada…
- Fica aqui o saco; quando o senhor
quiser come, não há problema.
Dos que vivem na rua, os doentes
mentais são os mais frágeis dos frágeis. Nada se compara, a um delírio que permanentemente
os atormenta.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2020
Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (2)
Aparenta ter mais de oitenta anos, de barba branca, por fazer…. Neste tempo, vésperas de Natal, do que mais sente falta é da família que está longe, espalhada, alguma na ilha de Santiago (Cabo Verde), outra na América e outra nos arredores de Lisboa. Não procura ninguém e nem ninguém o procura. Pode lá haver maior solidão – pensamos nós.
- Não estou só, tenho
uma companheira de muitas noites e dias, mas às vezes desaparece e nessas
alturas fico sozinho e doe-me tudo: o corpo e a alma. Preciso dela, é muito
decidida, se não fosse ela não tinha arranjado o bilhete de identidade e não
recebia nada do Estado.
- É um grande amor –
diz-lhe o jovem voluntário que lhe entrega comida quente.
- É, mesmo – e começa
a chorar.
terça-feira, 22 de dezembro de 2020
Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (1)
“Enrolada num cobertor, uma mulher dorme sobre o cimento do passeio, abrigada apenas pelo muro que ladeia o quarteirão. Quando ouve a porta de uma carrinha abrir-se, desperta, com movimentos lentos, da sua letargia. O som já lhe é familiar. É a equipa da Legião da Boa Vontade (LBV) que chega com sopa, leite e pão. Provavelmente, a única refeição quente que tomou ao longo do dia.
O cabelo está molhado. A face inchada, adquiriu a tez arroxeada característica das queimaduras provocadas pelo frio. Quase sem proferir palavra, a dona Ana aceita de bom grado a sopa que lhe é oferecida e come-a com a mesma paciência que utilizou para se levantar. Quando acaba, pede um cobertor e enrola-se uma vez mais de encontro ao cimento frio.”
terça-feira, 12 de novembro de 2019
A mãe que deitou o filho no caixote do lixo
Foto: INEM |
Não descortino, por isso, como se pode reduzir tudo ao plano social. Não descortino, como há quem considere tratar-se apenas de um crime de exposição ao abandono. É muito mais do que isso, obviamente, a não ser que se venha a provar que ela não tinha consciência do ato.
Por outro lado, também é incompreensível, como é que o Estado não consegue atuar, através das instituições e das técnicas competentes, na ajuda atempada, a vidas miseráveis como esta.
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
O Outro:quem é?
Nas escadas, alguns sem abrigo: um compõe os cartões onde dormirá, alguns dormem já, um está deitado em cima do muro da varanda com uma perna suspensa... Os empregados do bar atendem as pessoas, umas sentadas à mesa, outras já de pé, preparadas para regressar a casa ou ao quarto de hotel.
Entretanto, os carros continuam a passar, a vida segue, como se tudo estivesse bem, como se tudo fosse normal, como se não escutássemos "gritos"...
A noite dará lugar ao dia, na eternidade do tempo, em que acontecem todos os momentos e se fazem e desfazem todas as vidas. Mas não há desculpa, todos vimos. Quem são estes seres humanos? Que derrotas, vitórias, desejos e sonhos carregam?