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quarta-feira, 6 de julho de 2011

Órfã, muitas vezes

Estava sentada, bem lá no fundo do pátio, sozinha, como se quisesse entrar no interior de si mesma e perscrutar, até ao limite, o inferno que a consumia, em vez de o afastar, distraindo-se, concentrando-se noutra coisa,. Inferno que a consumia, sim, que ninguém pode viver, por muito tempo, com tamanha mágoa, sem cair num poço sem fundo, num abismo existencial.
Como a mãe lhe fazia falta! Nunca podia ter imaginado o quanto! Se não fosse a avó, não aguentaria. Ter treze anos e ficar sem mãe, quando já não se tem ou não se sabe quem é o pai, é ficar órfã muitas vezes, numa deriva que não sabia até onde poderia ir. A mãe era a luz, o colo, o porto seguro..., agora, tudo ruíra, o seu mundo ruíra, como não julgava possível acontecer.
Era-lhe insuportável estar com as outras pessoas, falar, conversar..., quase se esquecera que lá fora o mundo continuava, tudo continuava, tinha de fazer o luto, sabia-o, pois não poderia viver por muito mais tempo encerrada numa dor e numa solidão que não a conduziriam a lado nenhum. 
- Quem é o meu pai?- pensava e perguntava, continuamente.
- O teu pai morreu - ouviu muitas vezes a mãe dizer-lhe.
- Mas quem é? Podes dizer-me quem é, devo ter outros irmãos, outra família, só metade de mim parece existir, uma nuvem de silêncio se espalha sobre tudo o que tenha a ver com o meu pai, e isso sempre me entristeceu.
- O teu pai já morreu - dizem-lhe também a avó e os tios.
- Mas se morreu, porque não dizem quem foi! Não é por isso que deixa de ser meu pai!
Nunca precisara dele como agora, mas como poderia encontrá-lo sem ajuda?
- Talvez, a minha mãe dissesse a verdade e ele esteja morto ou talvez ande por aí e o destino um dia nos una, aliás, já vive em mim, fantasiado ou real, não sei. E bonito o meu pai, elegante, boa pessoa.... Talvez, seja de Maputo ou de outra cidade e a a minha mãe se tenha  perdido dele mesmo antes de eu nascer, talvez seja de uma vila à beira da estrada. Talvez seja ...

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Criança afegã armadilhada

Há dois dias,  uma criança de oito anos morreu, quando os assassinos - extremistas talibãs - que a armadilharam, a fizeram explodir por controlo à distancia. Estava destinada a fazer explodir uma esquadra de polícia, mas por erro de cálculo não chegou lá. Haverá alguma coisa mais terrível do que armadilhar crianças, usando-as para cometer actos terroristas? Na semana  passada, outra criança tinha sido armadilhada para matar pessoas num mercado da cidade, foi felizmente desarmadilhada a tempo, evitando-se a explosão, mas não o medo que vimos nos seus olhos. Actos como estes mostram bem até onde pode ir a maldade humana.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

(Des)medida

"Dizem os sábios que um dia vos apagareis" - gritou o pirilampo às estrelas.
As estrelas não responderam.
                                                                                                     (Tagore)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Todos lhe querem bem

-  Artur está connosco há catorze anos, para mim é como um pai, vejo-o como um pai. Quando  ficou connosco  estava sozinho no mundo, não tinha ninguém, andava sempre "borrachinho", fumava e bebia, fumava e bebia, quase não falava, ainda agora quase não fala... Começou  a ficar magrinho, cansado, quase sem se poder arrastar, disse para a minha irmã: o Artur tem algum mal ruim. Foi ao médico, mandaram-no fazer exames, e o que se temia confirmou-se: cancro nos pulmões. A doença dele está a dar cabo de mim, não aguento, até o meu marido, quando lhe disse do Artur, chorou, estou casada há dezasseis anos e nunca o tinha visto chorar. Sabe, Artur é especial, deixa-se querer, como hei-de explicar isto..., é bom, todos lhe querem bem, já disse aos meus filhos pequenos: não arreliem o Artur que ele está muito doentinho. Trato-o o melhor que posso, vou fazer tudo o que puder por ele.

E fez, mas Artur não sobreviveu. Morreu dois meses depois.  Será que alguma vez soube o quanto era amado por esta família de feirantes, que ganhava  a vida de feira em feira, explorando  o negócio de uma pista de carros eléctricos? 

(Sobre um documentário passado na RTP2)

domingo, 19 de junho de 2011

Leram árabe para mim

Vivem perto de Lisboa, frequentam escolas públicas e também aprendem a ler árabe, numa espécie de cartilha, para aprenderem o Alcorão, nas madraças junto da mesquita. Andam dois ou três anos a  aprender  o árabe básico, a língua, as palavrinhas, o vocabulário.... As madraças são escolas de catequese, abertas uma ou duas horas por dia, frequentadas por meninos, até aos dez, onze anos,  que memorizam o Alcorão, ritmadamente, com  gestos próprios, inclinando-se sincronizados. Aprendem, ainda, a moral e um pouco da história da religião.  Fico a pensar no sentido e na importância das crenças que todos temos.  Recuo à minha infância, às minhas lições de catequese, aos dias sem perguntas difíceis.

sábado, 18 de junho de 2011

O gémeo subnutrido

Estava ali, embrulhado num pano roxo, nu, à espera de morrer desnutrido, quando o médico da região, que conhecia o caso, e alguém da Cruz Vermelha o vieram libertar da morte. O médico que o tinha atendido no posto local pergunta à mãe:
-Por que não foi à cidade internar o seu filho? Dei-lhe as guias para ser visto no hospital e ser integrado no programa alimentar.
- O meu marido disse que não valia a pena – cala-se, olhos no chão, e prossegue – não tenho dinheiro para o transporte. Como são gémeos, não tenho leite para os dois, um vai ter de morrer.
- Vai ter de morrer?
- É assim, o que sempre acontece, sem possibilidade de serem alimentados devidamente.
- Não, vamos salvá-lo.
Convencida a família, que resiste, porque o marido está fora e precisam da sua autorização, caminham para o hospital, pensando na possibilidade de salvação para aquela criança, tão pequena, quase recém nascida.
É internada e observada por um enfermeiro entendido em situações semelhantes. Ele faz uma expressão de alegria e todos respiram de alívio.
- Tem boas possibilidades de se reabilitar - deu-lhe imediatamente um medicamento - ficará  internada por semanas e entrará no plano de alimentação tal como o irmão gémeo.
Este bébé livrou-se da morte certa, por um acaso, num dia em que  uma equipa estrangeira, em reportagem pelas longínquas aldeias do Níger, se  depara com este cenário, demasiado comum, infelizmente: uma família assistindo à morte lenta de um dos seus filhos, porque a mãe não pode alimentar os dois e não têm dinheiro para adquirir leite de substituição.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Casamentos forçados, não queriam casar

Viviam lá bem no sul da Guiné-Bissau, numa zona onde as tradições familiares são pesadas, mesmo que tenham passado os anos e a vida tenha  trazido novos saberes e novos mundos. Há pontos intactos, rituais e tradiçõs ancestrais que se cumprem como desde sempre, com medo de feitiços, de desgraças,  de ficarem mal faladas...
Estes casamentos forçados, quase sempre com homens muito mais velhos, deixam as jovens em profundo desespero, cercadas por um compromisso familiar, impedidas de tudo, de ser quem são, de se desenvolverem como devem, de ser pessoas inteiras, de irem  à escola, de brincarem, de escolherem. Muitas têm apenas uma saída, fugir das famílias, para muito longe, quase sempre para a capital.