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terça-feira, 5 de abril de 2011

Reinserção (ou talvez não)

- Para a “bófia” todos aqui são drogados e ladrões.
- E não são, pois não?
- Claro que não. Há “bué” de gente que trabalha e putos que andam na escola.
- E tu andas?
- Não. Já andei, mas não gostava, não sabia nada, era perder tempo. Quando os “cotas” foram dentro nunca mais voltei à escola.
- Os teus pais estão presos?
- Estão, há “bué” de tempo....
Faz silêncio e olha-me intensamente, não sei se com raiva se com súplica, como se eu tivesse alguma coisa a ver com tudo o que lhe estava a acontecer e pudesse ajudá-lo.
- O que é que tem, estarem presos? – Pergunta-me, zangado.
- Eu não disse nada. Esperavas que eu tivesse feito algum comentário?
- Andavam a vender (droga), andavam, e depois? O que é que tem? Também já vendi, agora não vendo, não vou vender mais.
- Costumas ir à Associação?
- Não vou, é tudo mentira. Mentem-me, mentiram-me sempre.
- Não acreditas neles?
- Prometeram comida, trabalho e “cenas” dessas e nada,  muitas vezes passo fome, tenho que roubar, percebe, tenho de roubar, roubar percebe, veja se percebe....
- E tu o que é que lhes prometeste?
- Nada, não prometo nada, não me chateiem, falam de tretas e vem a “bóbia” e vamos presos.
- Achas que vais preso?
- Se vou preso? Todos os meus amigos estão presos, até aos dezasseis anos um gajo anda na boa, depois toma, caem em cima e toca a andar. Qualquer dia vou.
- Podes não ir, isso só depende de ti.
- Não me importo, não me importo mesmo...
- Eu importo-me que tu vás preso e há outras pessoas que também se importam, tenho a certeza.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Somos todos responsáveis

Pergunto ao jovem que me ajudou a arrumar o carro e com quem converso, enquanto procuro uma moeda: - Por que não me olha? Fala sem me olhar.
- Nunca olho ninguém, senhora. Ninguém me olha e eu também não olho ninguém. É assim, e não me importo nada. Estamos quites.
Lembro-me de Lévinas (filósofo, 1906-95) e contraponho: - Eu gosto de olhar as pessoas, penso que os rostos falam. Não acha que tenho razão?
Fico sem resposta, porque, entretanto, chegou outro carro para arrumar. E chegará outro e outro, e quantos mais melhor, até à quantia exacta de mais uma dose, num ciclo infernal (julgo eu) em que aquela vida se transformou.
Aqui, como em muitos outros casos, chegámos ao limite, à fronteira, da não relação. O “o olhar no rosto”, a proximidade com aquele que me olha e a quem eu olho, há muito que deixou de existir. O passo, até à quase desumanidade, está a uma curta distância.

Eu sei que tens razão (desculpa, começar-te a tratar por tu, é uma forma de te sentir próximo), muitos não te olham, não querem mesmo olhar-te. Desejariam que não existisses ou que não te cruzasses no caminho. Se calhar, a maioria, até. Eu mesma, para quê ser hipócrita, desejaria que não estivesses aqui, mas estás e isso não me é indiferente. Por quê, então, negares o olhar a quem deseja fixá-lo, a quem quer ver para além do que aparentas ser?
Dirás que não tenho nada a ver com isso. Às vezes também penso assim. Apetece-me ir na onda e acreditar que ninguém falhou, só tu falhaste, que não tenho nada a ver com o que te está a acontecer. É um problema teu, da tua família, mas meu não.
Outras vezes, reivindico direitos para ti, respostas sociais, que deviam existir (e funcionar) para que não tivesses chegado onde chegaste. Revolto-me. Para que pago eu impostos, para viver numa sociedade que não cuida de quem precisa, num país que deixa cair nas margens cada vez mais pessoas?
Vêm-me à cabeça as perguntas que tantas vezes faço: – Quantos direitos ficaram por cumprir? Quantos te foram negados? Quantos tu dispensaste, porque não quiseste assumir deveres? Que instituições falharam (e continuam a falhar)? Falhou a família, os amigos, as associações, a polícia, o patrão? Terá havido de tudo, quem te tenha aberto a porta vezes sem conta e também quem a tenha fechado muitas vezes.

sábado, 2 de abril de 2011

Público e privado

Li grande parte do livro de Ingrid Betancourt "Até o silêncio tem um fim", sobre os mais de seis anos na selva colombiana. Há partes e descrições impressionantes,  mas por vezes ficamos a pensar até que pronto é legítimo  ela falar, com  o pormenor e a subjectividade (inevitável) com que o faz, dos companheiros de cativeiro, por exemplo, de Clara Rojas (também li o seu livro e não fiquei com a mesma sensação). Julgo que, por mais que seja importante ter relatos destes, há aspectos sobre os quais, envolvendo tão directamente outras pessoas, o silêncio devia continuar e não serem tornados públicos por terceiros,  Há uma linha que não se pode ultrapassar, percebo a polémica sobre o livro, na Colômbia.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Líbia, os rebeldes

Os rebeldes líbios que aparecem nas televisões são o exemplo acabado da desorganização, da impossibilidade de eficácia, apesar da vontade, da justeza da revolta e de tudo o mais, mesmo com os bombardeamentos da Nato. Temo que, passada esta fase, se o regime não cair, os sobreviventes destes homens, sejam fuzilados um a um e exibidos como troféu. É impossível que a Nato não tenha um plano sequente aos ataques aéreos. Parece que a única saída é o regime cair por dentro, o ministro dos negócios estrangeiros, que deixou Kadafi e pediu asilo político na Grâ-Bretanha, é um bom indício.

quarta-feira, 30 de março de 2011

A pobreza extrema

Em muitas regiões do mundo, as condições de vida agravam-se, a cada dia que passa. Hoje, mesmo, milhões de pessoas irão dormir com fome, sub-nutridas, vulneráveis a doenças e a epidemias que as deixarão marcadas para o resto das suas vidas ou as levarão a uma morte prematura – a SIDA é o caso mais flagrante, com dimensões devastadoras, mas continuam a matar a malária, a tuberculose, a cólera… Nestas condições a emigração clandestina aparece-lhes como a única saída e arriscam tudo para chegar à Europa, que julgam de portas abertas e mesas cheias. Não raro, deparam-se exactamente com o inverso, muitas barreiras e muitas dificuldades. 

segunda-feira, 28 de março de 2011

Refugiados

À ilha italiana de Lampedusa, no mediterrâneo, chegam  vagas de refugiados tunisinos, egípcios e agora líbios, na procura de um lugar seguro para  passar estes tempos de crise ou reiniciar vidas. É certo que todos os países que assinaram a Convenção relativa ao estatuto dos refugiados, de 1951, têm a obrigação legal de receber e acolher dignamente as pessoas vítimas de perseguição, fugindo de conflitos armados ou de tensões políticas, como é o caso destes africanos.
Portugal também assinou esta convenção, de nodo que  todos os anos recebemos refugiados de várias nacionalidades, embora em número pouco significativo. Para lá do apoio do Estado, que tem um centro de acolhimento perto de Lisboa, na Bobadela, existe o Conselho Português para os Refugiados, constituído em 20/10/91, que dá, aos que pedem asilo, apoio jurídico e social, ajudando-os a conseguir o estatuto de refugiados, a conseguir emprego, a aprender a língua…

sexta-feira, 25 de março de 2011

Mãe negra

(a propósito do recente dia mundial da poesia)

Prelúdio

Pela estrada desce a noite
Mãe-negra desce com ela.
Nem buganvílias vermelhas,
Nem vestidinhos de folhos,
Nem brincadeiras de guisos,
Nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
Em duas faces cansadas.

Mãe-negra tem voz de vento,
Voz de silêncio batendo
Nas folhas do cajueiro...
Tem voz de noite descendo,
De mansinho pela estrada...
Que é feito desses meninos
Que gostava de embalar?....

Que é feito desses meninos
Que ela ajudou a criar?...
Quem ouve agora histórias
Que costumava contar?...

Mãe negra não sabe nada...
Mas ai de quem sabe tudo, como eu sei tudo
Mãe-negra!...

Os teus meninos cresceram,
E esqueceram as histórias
Que costumava contar...

Muitos partiram pr’a longe
Quem sabe se hão-de voltar!...
Só tu ficaste esperando,
Mãos cruzadas no regaço,
Bem quieta bem calada

É a tua voz deste vento,
Desta saudade descendo,
De mansinho pela estrada...

(Poesia de Alda Lara, in Poemas, 1966, Angola, in Os direitos humanos na Língua Portuguesa, )