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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Ainda, sobre a pena de morte

(Talvez isto corresponda a uma cena de um filme a que assisti e de que não recordo o nome, não importa para o caso).

O velho, muito velho, mais de cem anos, pensa que a sua vida se estende para lá do razoável, e daquilo que ele deseja há muito, porque tem um destino: viver para ver morrer todos os que amou. Assim foi, viu partir a primeira mulher, os irmãos, os filhos, a 2ª mulher, toda a família, os amigos…, agora, sem ninguém, assiste à sua inexorável decadência, à sua própria morte, de algum modo.
Atormentado, há mais de sessenta anos, por uma dor na consciência que o tortura, massacra e desafia, sempre, mas mais ainda pela calada da noite, quando a insónia aperta sem piedade. Má sorte ter sido um executor oficial. Má sorte ter ordenado execuções. Má sorte continuar vivo.
Martirizavam-no, até ao limite do suportável, as imagens e as últimas palavras dos condenados. Consumia-se, sabendo que podia não ter dado a ordem, mas também ele cumpria uma ordem, a decisão de um júri, que também ele cumpria uma ordem, a de condenar à morte os que, segundo as leis do estado, o mereciam. Uma cadeia que não podia deixar de ter responsáveis. Todos eram. Mas ele só podia responder por si, e abandonou o cargo.
Recorda com nitidez e vezes sem conta a última condenação à morte que ordenou, o homem que foi executado, mas também o choro do jovem guarda que assistia, porventura pela primeira vez, a uma execução. Um choro mudo que os homens não choram e menos os candidatos a executores de penas de morte.
Todos, ali, independentemente do que cada um fazia, eram funcionários da morte. Maldição (mesmo se foi escolha) ser um executor profissional! Maldição sair depois para a rua e olhar os outros como se nada se passasse, como se nada tivesse acontecido! Maldição haver leis e estados que condenam os seus criminosos à pena capital, sem margem para qualquer redenção, sem possibilidade de se arrependerem, sem margem para voltarem a ser pessoas decentes, na medida em que isso possa voltar a ser possível. Todos os seres humanos, por maiores criminosos que sejam, e alguns são, se podem redimir, ou não? O condenado à cadeira eléctrica é um ser humano, ou já não é? Talvez possam redimir-se, de resto, acontecem surpresas naqueles corredores da morte…
Voltemos à cena. Quem assiste a tudo, vê a cadeira, a electricidade a invadir o corpo, a contorção dos músculos, o momento final..., não pode deixar de pensar que se trata de uma refinação do mal, mesmo que o manto da legalidade cubra todos os actos. Naquela sala, todos morreram um pouco, algo ficou para sempre a marcar-lhes os dias, mesmo para os que continuarem,mecanicamente, a ligar os fios, a apertar os botões, a observar o último estertor, a desligar tudo, a recolher o corpo, a cobri-lo com um lençol, a entregá-lo à família ou a algum serviço público. Tudo segue, mas não sem marcas, não sem devastações pessoais, morais, psicológicas, etc.

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