Goreia,
ilha frente a Dakar, funcionou como entreposto de escravos, durante mais de
três séculos. Daí, entre quinze a vinte milhões de escravos devem ter embarcado
em barcos negreiros, com destino à América, ao Brasil ou às ilhas do Caribe. Destes,
mais de 6 milhões morreram na travessia, tal as condições miseráveis em que
eram transportados, nos porões, como gado.
Partiam,
deixando, tudo, atrás. Até o próprio nome, eram já números quando embarcavam e
números quando chegavam aos cafezais, aos campos de algodão ou às plantações de
açúcar. Aí, passavam a usar nomes americanos, se iam para a América,
portugueses, se iam para o Brasil, ou espanhóis, se iam para o Caribe.
Ao
serem roubados do nome africano, muitos descendentes destes escravos negros não
sabem de onde vieram, nem como procurar as suas raízes, mesmo que o queiram
fazer.
No
entanto, há uma identidade africana, profunda, que permanece, mesmo que
silenciosa. Uma noção de pertença que sobrevive a muito, a quase tudo, a séculos
de exploração e de afastamento.
“Estou
aqui pela primeira vez, mas é como se estivesse cá estado desde sempre, sou de África”,
diz a jovem americana, integrante de um grupo de música afro jazz que junta
músicos de diferentes origens – americanos, africanos, europeus… - para,
juntos, reinventarem, uma alma, um espírito, que não exclua raças nem culturas.
“Onde
estarão as minhas raízes? Talvez, estejam nalgum destes países da costa
ocidental africana. Talvez, a minha tetra avó ou, antes dela, outro antepassado
meu, tenha chorado nesse cais ao vir-se despedir do filho, do marido ou de outro
familiar próximo”. Abeira-se dela uma jovem que lhe fala como se a conhecesse
desde sempre: “ Olá, também sou cantora, também canto jazz” (não se sabe se
sim, se não, pode ser uma estratégia de aproximação), mas que afinal resulta.
-
Ah, sim!
-
Sou a Amina, não esqueças, Amina. Sou daqui, de Dakar. E tu?
-
Sou de Nova Orleães, Estados Unidos.
-
Vou cantar uma canção para ti. Queres ouvir?
A
americana faz gestos de incredibilidade, não esperava aquela atitude.
-
É bonita – diz, sorrindo!
-
Canta também uma música para mim – pede-lhe a africana de Dakar.
-
Não, nunca canto fora dos espetáculos, só no duche.
-
Canta, também cantei para ti.
Tenta
lembrar-se de alguma canção e canta uns versos.
-
Bonita, vais cantá-la no teatro?
-
Não, esta não a canto, hoje, à noite. Cantei-a só para ti.
-
Acabamos de nos conhecer e quem sabe se não nos voltamos a ver algum dia. O
mundo é um “panuelo”, muito pequeno, podemos encontrar-nos. Talvez vá para a América,
cante num clube de jazz e até no teu grupo…
-
Quem sabe, quem sabe...
A
africana de Nova Orleães não quer acreditar no que acaba de lhe acontecer. Quando
lhe perguntam o que se passou, não consegue dizer nada. Não tem palavras, algo se
passou no seu encontro com Amina que não pode expressar. Não sabe expressar; um
não dito, a está marcando por dentro.
(a
propósito de um documentário a que assisti)
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