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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Sem-abrigos nas ruas de uma cidade (6)

  São dois irmãos, marcados pelo alcoolismo, que arrumam carros, há mais de vinte anos, à entrada de um centro comercial. Primeiro, contam as moedas para ver se já chegam para comprar tabaco. Depois, contam as moedas para ver se já chegam para comprar o que comer e beber (sempre vinho). Se é suficiente, compram comida, se é pouco comem pão sem nada ou com mortadela.

Uma vez perguntei-lhes:

- Têm família?

- Ele – aponta para o irmão – tem filhos, mas não querem saber. Estamos a arrumar carros desde que a minha mãe morreu. Pedimos, mas não roubamos nada a ninguém. Se o dia corre  mal, esperamos até mais tarde e pessoas do supermercado dão-nos comida.

 

sábado, 26 de dezembro de 2020

Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (5)

 Tem 21 anos e foi abandonada pela mãe quando tinha quatro.

- A minha mãe seguiu a vida dela sem olhar para trás, deixou-me em casa do meu pai, mas como a minha madrasta não me via com bons olhos andei de um lado para o outro, uma vez na minha avó, outra no meu pai, até que um dia fugi e vim para aqui, para esta casa abandonada juntar-me a um grupo.

- Consumiam drogas?

- Claro, eu também; se não fosse a droga, não tinha ido para a prostituição. Quero sair disto, mas é impossível, quero uma vida como a gente normal. A assistente social sabe disso e prometeu-me arranjar lugar num albergue e um tratamento. Já lhe garanti que desta vez não fujo. Não fujo, como fiz da outra vez.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Sem-abrigos nas ruas de uma cidade (4)

 Um casal, sentado no muro, na casa dos trinta anos, espera a carrinha.

- Tenho três filhos, mas só as duas mais pequenas vivem connosco. O meu filho mais velho não é filho dele, vive num lar de rapazes – diz a mulher.

Estão os dois desempregados, não vivem na rua, mas é como se vivessem – diz-nos um dos voluntários.

– Quem é que dá trabalho a um tipo que esteve preso? Ninguém. Foi a puta da droga que deu cabo da minha vida. Já não consumo, mas fumo tabaco como uma chaminé.  

Comem a sopa quente e o resto que lhes distribuem e levam para as filhas pacotes de leite, pão e bolachas,

Ela agradece e despede-se. Não parece tão revoltada como o companheiro.

 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (3)

 Visivelmente perturbado e com um discurso sem nexo, diz aos voluntários que tentam acalmá-lo:

- Tenho uma fortuna para receber, mas não posso, porque me roubaram os papéis do banco. Roubaram-mos aqui. Vou lá todos os dias, chamam a polícia e não me deixam entrar.

- Não quer uma sopa quente e o resto que aqui temos para si – diz-lhe um dos jovens.

- Não me chateiem, desapareçam, não preciso de nada…

- Fica aqui o saco; quando o senhor quiser come, não há problema.

Dos que vivem na rua, os doentes mentais são os mais frágeis dos frágeis. Nada se compara, a um delírio que permanentemente os atormenta.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (2)

 Aparenta ter mais de oitenta anos, de barba branca, por fazer…. Neste tempo, vésperas de Natal, do que mais sente falta é da família que está longe, espalhada, alguma na ilha de Santiago (Cabo Verde), outra na América e outra nos arredores de Lisboa. Não procura ninguém e nem ninguém o procura. Pode lá haver maior solidão – pensamos nós.

- Não estou só, tenho uma companheira de muitas noites e dias, mas às vezes desaparece e nessas alturas fico sozinho e doe-me tudo: o corpo e a alma. Preciso dela, é muito decidida, se não fosse ela não tinha arranjado o bilhete de identidade e não recebia nada do Estado.

- É um grande amor – diz-lhe o jovem voluntário que lhe entrega comida quente.

- É, mesmo – e começa a chorar.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Sem-abrigos, nas ruas de uma cidade (1)

 “Enrolada num cobertor, uma mulher dorme sobre o cimento do passeio, abrigada apenas pelo muro que ladeia o quarteirão. Quando ouve a porta de uma carrinha abrir-se, desperta, com movimentos lentos, da sua letargia. O som já lhe é familiar. É a equipa da Legião da Boa Vontade (LBV) que chega com sopa, leite e pão. Provavelmente, a única refeição quente que tomou ao longo do dia.

O cabelo está molhado. A face inchada, adquiriu a tez arroxeada característica das queimaduras provocadas pelo frio. Quase sem proferir palavra, a dona Ana aceita de bom grado a sopa que lhe é oferecida e come-a com a mesma paciência que utilizou para se levantar. Quando acaba, pede um cobertor e enrola-se uma vez mais de encontro ao cimento frio.”

domingo, 13 de dezembro de 2020

O João (1)

 Com uma aparência de desleixo, afastado de todos, deixa-se cair contra o muro. Abandona-se como se desistisse de tudo.

- Deixem-me, deixem-me, deixem-me... – gritava, ao mesmo tempo que dizia palavrões.

- Estás bem? Sentes-te bem?

- Como posso estar bem? Vê além a “bófia”? Vêm de carro e armados, prontos para dar porrada, para a “bófia” todos aqui são drogados e ladrões.

- E não são, sei bem que não. 

- Claro que não. Há “bué” de gente que trabalha e putos que andam na escola.

- E tu andas?

- Não. Já andei, mas não gostava, não sabia nada, era perder tempo. Quando os “cotas” foram dentro nunca mais voltei à escola.

- Os teus pais estão presos?

- Estão, há “bué” de tempo....

Faz silêncio e olha-me, intensamente, não sei se com raiva se com súplica, como se eu tivesse alguma coisa a ver com tudo o que estava a acontecer e pudesse ajudá-lo.

- O que é que tem estarem presos? – Pergunta-me, zangado.